O fim do mundo na próxima curva

1. Ao fim de sete meses sem mar, tenho o mar do outro lado da rua. Esta casa já existia em 1961, portanto gosto de imaginar que o blindado da fuga de Caxias passou mesmo por baixo da minha janela, com os GNR a correrem atrás dos comunistas, igual a um filme do Chaplin. Escrevo a uma caminhada da prisão, coisa de meter por um atalho aqui nas traseiras, e suponho que a praia, então, não teria gente, porque a fuga foi em Dezembro e os glaciares eram um pouco mais firmes. Agora, por exemplo, vamos entrar em Novembro e ainda dá para um mergulho. Está claro que o mundo vai acabar na próxima curva, mais ou menos como o restaurante Mónaco, que naquele momento de 1961 estaria a preparar os almoços. Porque ainda não eram dez da manhã em Caxias quando os clandestinos do PCP derrubaram o portão, a bordo do blindado.

2. Talvez porque acabo de ser penhorada pela Segurança Social ao fim de vinte e tal anos de contribuições mensais, talvez porque isso é apenas um byte mais na informatização geral do cidadão enquanto resíduo sólido, nunca matutei tanto na clandestinidade. Então, entre duas estações de metro, numa daquelas carruagens cheias dos turistas que vão salvar Portugal, leio que o director do Instituto de Ciências Sociais decidiu suspender a impressão, e destruir o que já estava impresso, da última Análise Social por causa de um artigo que reproduzia graffiti “ofensivos”, leia-se, satíricos em relação ao poder político e económico. A Análise Social é uma revista académica mais velha do que eu, e quase contemporânea da fuga de Caxias. Acho que foi mais ou menos por essa altura que o Zé se pirou do Alentejo à boleia. Tinha 16 anos.

3. O Zé é o meu amigo agricultor biológico, de quem comecei a falar há sete meses, quando me mudei para o Alentejo. Fomos vizinhos em Montemor-o-Novo, entre fim de Março e fim de Outubro. Na véspera de encaixotar as minhas coisas, subimos para jantar na ermida, o único lugar de Montemor de onde se avista a colina do Castelo, por ser a colina oposta. As velhas oliveiras a meio do caminho estavam esplêndidas, mas o Zé confirmou que este ano não se aproveita uma azeitona para azeite, nem daquelas cortadas, para comer com orégãos, porque o Verão que veio agora não veio no Verão. Mas como já tínhamos tido toda uma conversa sobre o assunto, não nos estendemos nisso. O nosso jantar de despedida foi mais sobre guerrilha.

4. Aos 16 anos, o Zé correu a Europa à boleia. Depois, já universitário, e para escapar à recruta colonial, acampou em Genebra, a estudar Sociologia, cada vez mais metido nas lutas de esquerda, ao lado dos imigrantes. Anos entre quartos de namoradas e casas colectivas, combates de rua com a polícia suíça e noitadas a ler marxismo, incluindo conversas com Antonio Negri, que além de marxista é um espinozista. Espinoza continua a ser leitura sazonal do Zé, a par de Agamben, Deleuze e o próprio Antonio Negri, que o Zé lê em tradução francesa ou directamente do italiano, herança desses sete anos de leitura e combate na Suíça.

5. Na noite anterior ao nosso jantar, eu fora a Évora ler um texto. José Alberto Ferreira, que é professor de Teatro na universidade, organiza uma sessão mensal chamada Cruzamentos, em que convida alguém a trazer um texto para ser lido em voz alta e depois debatido, numa igreja junto ao centro histórico. Levei A Inconstância da Alma Selvagem, do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, e li uma parte do ensaio O Mármore e a Murta, título inspirado num célebre excerto do Padre António Vieira em que ele diz que há povos que são mais como as estátuas de mármore e outros que são mais como as estátuas de murta, no que respeita à resistência e constância na fé. Por exemplo, europeus não católicos eram resistentes à conversão mas depois estátuas de mármore, que já não requeriam mais jardinagem espiritual, tal a solidez da fé, uma vez adquirida. Já os indígenas brasileiros não resistiam à conversão, pareciam dóceis, mas nada neles se mantinha, cedo saíam braços extra da estátua, como nas estátuas de murta, que o jardineiro tem de estar sempre a podar. Em suma, os índios eram uma incerteza sem fim para os laboriosos jesuítas com que o império português contou na colonização: inconstantes almas selvagens. E esta leitura deu mais de uma hora de conversa, incluindo o fim do mundo que Viveiros de Castro vê realmente na próxima curva, ele que se tornou um guerrilheiro internáutico, combatendo inimigo de índio, como ele diz, e portanto incapaz de votar em inimigo de índio, como ele diz. Era isto na véspera das eleições no Brasil. Portanto, discutimos o Brasil e o apocalipse segundo Viveiros de Castro, sobre o qual teríamos muito a aprender com os índios, porque eles trazem o apocalipse incrustado geneticamente há 500 anos.

6. A leitura na igreja foi quarta, o jantar com o Zé na quinta, sexta encaixotei a toca e sábado fui com o ucraniano Alexander para Lisboa. Alexander acha que Portugal é o país mais lindo da Europa, de tudo o que ele viu, entre a Ucrânia e Lisboa. É aqui que o seu filho de um ano vai crescer, falando português e ucraniano, e essa é a melhor razão para não dar razão a Viveiros de Castro, ou seja, para que o mundo não acabe já na próxima curva: o filho do Alexander, e o meu sobrinho de sete meses, que agora é meu vizinho na casa em frente ao mar onde estou acampada por umas semanas. Um dia destes até já lhe posso contar da fuga de Caxias, prepará-lo para o que aí vem. 

Foto
Enric Vives-rubio

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