Lógica da instabilidade

Croft caminha por cima de uma corda estendida sobre o abismo numa espécie de funambulismo escultórico.

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Nuno Ferreira Santos

A obra de José Pedro Croft é um universo em que se alia a um forte diálogo crítico com a tradição da escultura, uma singularidade intensa. Esta singularidade é agora transformada em evidência em duas exposições do artista em Lisboa. Aparentemente, este díptico expositivo tem uma separação disciplinar: de um lado a obra gráfica, do outro as esculturas, mas esta é uma separação cuja validade é limitada. Não só porque o artista transita indisciplinadamente entre os dois territórios, mas também porque existe uma inquietação comum a todo este universo. Não se trata de uma questão acessória, mas de um confronto essencial que o artista realiza com um abismo, isto é, as suas obras não tendem à estabilização das tensões existentes no coração das obras de arte, mas, pelo contrário, são uma permanente provocação de planos e lógicas de instabilidade. Ao equilíbrio e reificação da forma artística, Croft contrapõe a instabilidade como vocação das suas obras. E não se trata de uma questão teórica, mas é uma constatação resultante da experiência directa das suas obras. Uma instabilidade tornada processo e método e que é visível na utilização indiferenciada de materiais — mármore, ferro, vidro, madeira, gesso —, na articulação com objectos terrestres — cadeiras, portas, pianos — e, por fim, na importante inclusão do reflexo como matéria formadora dos volumes escultóricos — espelhos e vidros. Tudo elementos que não assinalam uma preferência estética, mas são princípios de desenvolvimento de novas formas e, sobretudo, de novas espacialidades, volumetrias, sensibilidades e, claro, experiências.

Não se trata de uma transposição dos objectos quotidianos para o mundo da arte, mas de uma contaminação entre o plano terrestre e as coisas da arte ou, se se preferir, do confronto que o artista protagoniza entre a geometria pura, euclidiana, ideal, com uma geometria terrestre, isto é, a geometria tão presente nas suas obras é determinada não por uma forma ideal, mas pela presença humana na Terra e pelo modo animal, sensível, material, com que se constroem os espaços habitados.

Outro aspecto relevante está nas impurezas, nos desacertos e na exposição dos erros de execução. São obras que recusam a perfeição minimalista do objecto acabado, perfeito, e preferem as marcas e sujidade da mão humana. Marcas que sublinham a sua qualidade terrena, a que se junta uma precariedade construtiva expressa no modo como os diferentes elementos formadores das obras estão instavelmente justapostos num equilíbrio periclitante.

Outro elemento fundamental é a recorrente presença dos espelhos e vidros: primeiro, é a constatação da natureza ilusória da visão humana fazendo desses enganos, desvios e paralaxes materiais de construção da escultura e, segundo, dão conta de uma inquietação relativa à natureza espectral das imagens espelhadas: imagens sem sujeito e que tornam consciente o intervalo existente entre uma coisa e sua própria imagem. E este intervalo é um ponto de desenvolvimento destes trabalhos.

Desequilíbrio, precariedade e inacabamento parecem ser os eixos principais destas obras que não são acontecimentos fortuitos e casuais, mas são criados: é a partir de uma lógica da instabilidade que Croft forma o seu universo, o qual constitui um caminhar por cima de uma corda estendida sobre o abismo, numa espécie de funambulismo escultórico. De cada vez, o artista enfrenta o risco de abandonar as certezas de género e estabelecer um diálogo crítico com a história da escultura, abrindo a obra para uma imensidão de temas e tempos. Uma estratégia fundamental de destinar cada obra a um confronto do visitante com a sua experiência não da arte, mas do Mundo. 

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