No contrabaixo de Barry Guy há prédios e textos teatrais

Fortemente marcado pela arquitectura ou pelos escritos de Samuel Beckett, Barry Guy é um dos nomes fundamentais da música improvisada europeia a ter surgido nos inquietos anos 70. Actua sábado na Culturgest Porto, a solo, podendo trazer à baila com igual propriedade fragmentos de música barroca ou o experimentalismo mais radical.

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No emaranhado de dedos e cordas a enformar a música de Barry Guy, o mais provável é que não se entrevejam edifícios dos arquitectos Peter Eisenman e Richard Rogers, ou palavras de Samuel Beckett e Stéphane Mallarmé.

Só que, debaixo desse discurso musical, mesmo se disfarçados por notas atiradas umas para cima das outras, pode haver realmente pedaços da Max Reinhardt Haus – o edifício projectado por Eisenman para Berlim, a partir do conceito da faixa de Möbius, símbolo do infinito, em celebração da reunificação alemã. Ou do triangular edifício londrino Gherkin, mais conhecido por Cheesegrater (ralador de queijo), cujo modelo prismático envidraçado de Rogers pretende expor-lhe as entranhas. Rodeado em sua casa de livros de arquitectura e de pintura, Barry Guy socorreu-se destas duas imagens e das intenções de Eisenman e Rogers para ele próprio encontrar a forma a dar a uma peça que compôs para o Hilliard Ensemble. “Tinha encontrado as ideias musicais que queria trabalhar mas não sabia como apresentá-las. Foram estes dois edifícios conceptuais e a maneira como eles falavam dos projectos que me ajudaram a perceber como a música ficaria na partitura, como se iria também ela torcer e mostrar.”

A verdade principal a extrair daqui é que os dedos de Barry Guy não percorrem o contrabaixo como se a sua impressionante técnica e a sua capacidade de mostrar desprezo por regras e convenções não fossem mais do que fins em si mesmos, numa vertiginosa queda que embateria com estrondo no onanismo. Em vez disso, mesmo quando se encontra ao serviço da música improvisada, Guy está sintonizado com o mundo, procurando armadilhar as suas interpretações com intromissões de um universo concreto que possam estimular e indicar caminhos. É como se dispensasse o mapa, não querendo saber antecipadamente que estradas percorrer, mas agradecesse as suas próprias vagas anotações e indicações que o levarão não se sabe bem onde. Algo que Guy diz aplicar igualmente na sua música escrita. “Acho que o acaso tem um papel muito importante”, reforça, “porque no momento em que considero escrever uma peça há algo que me sugere uma direcção. Tal como com uma tela em branco, também numa folha de papel tem de se começar por algum lado. E aquilo que muitas vezes faço é, ao encontrar esse momento, sacar de lápis e estabelecer marcas no papel, só para registar deixas de flutuação de energia, densidade, complexidade e movimento.”

Mesmo numa situação de improvisação a solo, como acontecerá este sábado na Culturgest Porto, Barry Guy recorre a pequenas paragens que define previamente. Por isso, pode começar por visitar algumas curtas estruturas de canção ou usá-las como momentos de respiração entre duas secções totalmente imprevistas, como também recorrer mentalmente a instruções que prepara para si mesmo e que funcionam como indicações cénicas numa peça de teatro: “começar com arco”, “tocar em pizzicato”, “usar a madeira do contrabaixo”. No fundo, Barry Guy empurra-se para a frente e escolhe a forma como vai ser empurrado. “Num certo sentido”, explica, “ofereço-me algum material sobre o qual trabalhar, em vez de começar de uma situação totalmente livre. De qualquer forma, o que significa ser livre, no fim de contas? Todas as notas que possa tocar estão já arquivadas neste computador chamado cérebro e apenas dependem dos sentimentos que se apoderam de mim e da esperança de que a música possa interessar às pessoas. Depois, é ver o que acontece.”

Este tipo de recados feitos rastilhos foi usado, por exemplo, na sua série Fizzles, inspirada pela colecção de textos homónima de Samuel Beckett, e que Guy admite vir a incorporar no final do seu recital na Culturgest. Trata-se de curtos espasmos musicais, altamente devedores de uma pulsão obsessiva e ruminante, de que a escrita do dramaturgo irlandês também vivia, e são porventura o rasto mais inequívoco da influência de Beckett na música de Guy. “A minha paixão pela escrita de Samuel Beckett é muito intensa e sinto sempre que ao tocar estas peças estou a revisitar o seu espírito, mesmo que ele pudesse, se ainda fosse vivo, achá-las totalmente loucas, demasiado ruidosas e excessivas. São pequenas efervescências em que gosto de me sentir perto de alguns dos temas que ele trata. Gosto do humor dele, muito seco, da forma como pequenas coisas se tornam grandes acontecimentos, como a condição humana é explorada pelos sentimentos não exteriorizados dentro de cada situação.”

A sombra de Beckett tem sido de tal maneira constante na produção musical de Barry Guy que, após se ter “extasiado recentemente com uma interpretação de Not I, aquela peça com o cenário totalmente negro em que só se vêem os lábios vermelhos”, não resistiu a adoptar “a exclamação do conflito interno de uma pobre mulher que tenta comunicar mas não consegue expelir as palavras ou chegar às pessoas” como mote para a encomenda de uma peça para a violoncelista Kate Ellis. E a relação só não foi mais longe, possivelmente, porque os problemas respiratórios do dramaturgo, em 1989, boicotaram os planos do músico. “Há muitos anos escrevi-lhe uma carta a perguntar se ele consideraria escrever um dos seus Act Without Words para contrabaixo e instrumentista. Sei pelo Edward Beckett [sobrinho do autor] que ele morreu antes de chegar ao fundo da caixa onde estava a minha carta. ‘Lamento que não tenha chegado a responder-te’, disse-me o Edward, ‘mas tê-lo-ia feito’. Atrasei-me um pouco na tentativa de contacto.” Por momentos, pode ser a ligação telefónica perfeita até então a trair-lhe o discurso, mas a voz de Barry Guy soa pela primeira vez trémula.

Bach ou Evan Parker

Muito se passou desde as escapadelas nocturnas de Barry e amigos adolescentes quando ocupavam as traseiras do off-licence do pai de um deles e por lá ficavam a ensaiar longas horas. Foi aí, num movimento que repetiam com frequência (em que arrastavam consigo os músicos que actuavam num clube de jazz em Southeast London e cujo horário de encerramento forçava a estancar a adrenalina pelas 22h30), que os inexperientes miúdos ingleses se viram a acompanhar lendas de blues como Sonny Boy Williamson e Champion Jack Dupree. “Foi extraordinário porque eles tocavam blues no piano, empurravam-se, insultavam-se e provocavam-se o tempo todo”, recorda. Mas o episódio, que Guy recorda como “uma etapa do crescimento” como músico, pouca relevância parece ter perto daquilo que se seguiu. Desde início dos anos 70, alistou-se nas fileiras da mais fascinante e questionadora máquina improvisada europeia. Formou a London Jazz Composers Orchestra e, mais tarde, a New Orchestra, integrando ainda o fundamental Electro-Acoustic Ensemble de Evan Parker. Só que o seu contributo para a música improvisada faz-se, em grande medida, pela proximidade da música escrita contemporânea, sendo autor frequente de obras de música de câmara e intérprete de música barroca.

De todas as suas formações habituais, em que se incluem ainda dois extraordinários trios de piano com Marilyn Crispell e Agustí Fernández, a mais estável e marcante talvez seja aquela que o junta ao saxofonista Evan Parker e ao baterista Paul Lytton. “Gosto de ter âncoras musicais”, diz. “Esse trio de longa duração dá-me imenso prazer porque, conhecendo-nos intimamente, temos mecanismos de resposta que são chamados à acção com facilidade. Sempre que estou em palco com eles há um ponto de ruptura, e penso que isso acontece por a linguagem ser tão desenvolvida e a disciplina ser tão forte. Podem acontecer coisas incríveis num primeiro instante, como me aconteceu em 1992 com o Mats Gustáfsson, mas habitualmente gosto de trabalhar a longo prazo com as mesmas formações musicais.”

A riqueza da linguagem musical de Barry Guy e a forma como investe no universo temático de cada composição terá provavelmente origem nessoutro universo que mantém em paralelo. Se tanto o podemos encontrar a acompanhar cantatas de Bach, como a aplicar objectos sobre as cordas do contrabaixo para “expandir” a sonoridade do instrumento, a atenção que o músico dá ao contexto em que a obra é criada e à sua compreensão faz com que pelas suas mãos passe muito pouca aleatoriedade. “De certa forma, não vejo grande diferença entre as duas situações: assumo o mesmo compromisso de querer tocar a nota certa, no tempo certo e com o sentimento certo numa peça de Bach ou com o Evan Parker.” Só que numa situação tudo isso está escrito e implícito na partitura; noutra, aquilo que existe não é uma partitura, talvez apenas uma intenção.

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