Aqui a realidade é a realidade

Três partes desencontradas do Porto descobrem-se e descobrem o que querem para a cidade. É a democracia em voz alta, à procura de cidadãos de corpo inteiro. Mapa – O Jogo da Cartografia, que hoje se estreia no Mosteiro São Bento da Vitória, põe 150 actores não profissionais a darem o corpo ao manifesto.

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Mapa – O Jogo da Cartografia é o resultado de cinco anos de trabalho com grupos de teatro amador da cidade SUSANA NEVES
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Em palco, 150 actores não profissionais dão o corpo ao manifesto SUSANA NEVES
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Cada uma das três tribos da cidade representadas na peça têm o seu chefe, o seu corifeu SUSANA NEVES
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Mapa – O Jogo da Cartografia é um espectáculo em aberto, até porque o público faz parte da peça SUSANA NEVES

Hoje é dia de sorte grande e não se fala de outra coisa, mas haverá nesta história muitos outros assuntos para tratar, ou não houvesse sangue a ferver nas veias, pêlo na venta, e gente que bate no peito para dizer o que não quer. A lotaria dos papelinhos e papelões é tema de reportagem e a câmara de televisão cola-se ao rosto do povo para antecipar o grande momento. Dona Isaura vive no centro histórico do Porto há mais de 50 anos e tenta não gaguejar quando o microfone lhe aparece à frente. “Se me sair, saiu-me. Dava-me jeito… Até era capaz de tirar a carta e ia ver a neta que me nasceu lá fora e que eu só conheço pela fotografia." O grande prémio é tão-só o pretexto para três zonas do Porto – oriental, ocidental e central – se encontrarem, se descobrirem e perceberem qual o rumo que querem para a cidade. Cento e cinquenta actores não profissionais dão o corpo ao manifesto. Aqui a realidade é a realidade.

Mapa – O Jogo da Cartografia, que hoje se estreia no Mosteiro de São Bento da Vitória, constrói uma cidade palavra a palavra – mas também com coros, gestos, expressões não-verbais. O Porto é de carne e osso, carrega o passado no corpo, quer olhar para o futuro, veste-se de guerreiro com um dragão na cabeça. Esta cidade procura a sua essência e avisa alto e bom som: “Enquanto não vos mostrardes cidadãos de corpo inteiro, a Invicta não voltará. Ser cidadão não é somente habitar uma cidade, mas também transformá-la, torná-la cada vez mais habitável e amável."

É hora de colocar as cartas na mesa. Três tribos encontram-se frente a frente, cada uma com os seus hinos que transpiram características dos lugares. Lordelo dos operários de água doce, dos guerreiros de água salgada, das redes ao peito, das torres que caem e das dores que se erguem, dos olhos na água com os pés na terra. O Lagarteiro do povo insurgente, do bairro isolado mas unido, das vozes que não se calam quando reclamam justiça por inteiro. E a Vitória do centro histórico com vista para o rio, dos azulejos nas fachadas, dos carvoeiros, tintureiros, caldeireiros, merceeiros, reformados, desempregados, taberneiros gourmet, das pensões e dos becos, do som dos amoladores. Três tribos olham-se de alto a baixo e escavam até às origens da cidade que lhes é comum.

Cada tribo tem o seu corifeu, o chefe do coro, inspirado numa personagem local que se veste de passado, de presente e de futuro porque o tempo não importa. O Duque da Ribeira da tribo da Vitória é José Brochado. O mítico Capitão Moura, que saltou para a ribalta nos comentários informais do futebol, com o Lagarteiro ao peito, é encarnado por Maria Gil. E a mulher de vermelho, a senhora que enlouqueceu por amor e que Lordelo aprendeu a entender, é Marília Guimarães. São eles que comandam as tropas deste povo das vísceras, das tripas, do sangue que não pára de correr. Entretanto, a lotaria dos papelinhos e papelões passa à história porque é preciso desenhar o mapa de uma cidade.

 

De dentro para dentro

A roupa de Maria Gil é andrógina, um pouco futurista, a roupa de alguém que está preparado para tudo. Ela preparou-se. Andou pelo Lagarteiro e percebeu que ali as mulheres batem no peito como se cada palavra saísse directamente do coração. “Este mapa é um caminho novo para um povo tão deserdado da cidade. Se utopia lhe chamam, que seja uma utopia”, diz ao Ípsilon. O ensaio termina e Maria Gil pede uns minutos para beber água. Recupera o fôlego de uma peça intensa que cata respostas e coloca o dedo em feridas. “Mas primeiro é preciso apagar o que já não suportamos nem queremos suportar”, diz a determinada altura na peça. Momentos de aprendizagem dentro e fora do palco porque aqui não há separações. A realidade é o que se vê. “Aprendemos a olhar de dentro para dentro do Porto."

José Brochado, o corifeu da Vitória, inspirado no Duque da Ribeira, não tem papas na língua para encontrar um outro brilho para o Porto. “Sou um jogador, um salvador, mas muito trôpego. Tenho a minha neta a meu lado para equilibrar a velhice com a sabedoria das gentes da Ribeira." "É um sonho, uma utopia”, diz-nos depois de um dos ensaios. A procura deste homem que tem a passagem do tempo marcada no rosto dá-lhe que pensar. Esse mapa traz um novo Porto? “Não seria assim tão cor-de-rosa, mas seria uma cidade completamente diferente”, responde.

Sérgio Anjos é o Porto vestido de guerreiro, com lança e escudo. Tem responsabilidades acrescidas, é a alma da cidade, "que vem meter ordem numa cidade desnorteada, trazer a alma perdida da cidade, esta cidade que todos construímos e onde todos nós desejamos viver". 


As urgências de cada lugar

Cinco grupos de teatro comunitário do Porto remexem no passado, analisam o presente, discutem o futuro. O Grupo AGE, o Grupo Auroras – Lagarteiro, o Grupo de Teatro Comunitário EmComum – Lordelo do Ouro, o Grupo de Teatro Comunitário da Vitória – Centro Histórico e o Grupo de Teatro de Surdos do Porto olham-se ao espelho e tentam encontrar caminhos num mapa que repugna fronteiras artificiais. É um trabalho colectivo. Os diálogos nasceram da troca de ideias entre as gentes das três zonas da cidade. A poeta e dramaturga Regina Guimarães foi chamada para pegar nessas palavras e arranjá-las de outra forma.

Estes grupos de teatro comunitário resistem. Mapa – O Jogo da Cartografia é, no fundo, o resultado dos sete anos de trabalho que a PELE_Espaço de Contacto Social e Cultural do Porto já fez com eles. Hugo Cruz, que assume a direcção da peça, explica que esta é a “consequência orgânica e natural” desse percurso, e o momento de questionar a identidade de quem vive no Porto  uma identidade que não é única porque há diversidade para contar. E assim nasce um mapa humano que vai para além do que é físico. “Trabalhamos em cima do que é invisível nesta cidade e que gostaríamos de revelar”, diz. Os grupos de cada lugar fizeram visitas guiadas para dar a conhecer aos outros o que têm e não têm e percebeu-se que havia gente que não conhecia os cantos à sua cidade. Foi preciso derrubar fronteiras invisíveis. As histórias e as urgências de cada lugar foram surgindo e encaixando-se em frases arrumadas por Regina Guimarães, que delicadamente percebeu o que aquelas gentes querem dizer e têm vontade de mudar.

Assim se desenha uma cidade. Hugo Cruz garante que “não se trata de uma proposta arrogante”. É um espectáculo em aberto, até porque o público faz parte da peça. E se, nesta cidade, se escava rumo às origens das coisas, se ensaia um outro território, a fonte onde se foi beber é essa mítica Grécia antiga em que teatro e política andavam de mãos dadas, e em que a cidadania também se exercia fazendo ou vendo teatro.

O Coro Clássico do Orfeão do Porto, o Coro Sénior da Fundação Manuel António da Mota, o Grupo de Percussão do CIJ – Centro de Iniciativa Jovem, e a Orquestra Comunitária de Lordelo do Ouro, ADILO – Agência de Desenvolvimento Integrado de Lordelo do Ouro foram convidados para esta criação colectiva da PELE, co-produzida pelo serviço educativo da Casa da Música e pelo Teatro Nacional São João. A peça fica até domingo no Mosteiro São Bento da Vitória, sempre às 21h30. A 2 de Abril do próximo ano chega à Casa da Música, também no Porto, e a 6 de Junho ao Teatro Nacional D. Maria, em Lisboa.

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