Membros do Governo tinham mais de um milhão de euros no GES quando decidiram o seu futuro

Há 16 governantes, entre ministros e secretários de Estado, que assistiram com particular atenção ao desmoronar de todo o império Espírito Santo. Alguns são accionistas de empresas que faliram, outros têm contas acima de 100 mil euros no banco do grupo.

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Reunião do Conselho de Ministros Pedro Nunes

Quando, no dia 31 de Julho, uma quinta-feira, o Conselho de Ministros se reuniu, havia um diploma muito importante na agenda: o Decreto-lei 114-A/2014. À primeira vista, o diploma que prometia alterar o “enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento” podia não passar de mais uma transposição de legislação comunitária. Mas não era, de todo, esse o caso. Assinaram o diploma Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro, o secretário de Estado adjunto e do Orçamento, Hélder Reis, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete.

Esta alteração ao regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras surgia um dia depois de uma acentuada queda nas acções do BES, que entre quinta e sexta-feira, 1 de Agosto, se desvalorizariam 65,4%. Cada acção custava 35 cêntimos, já de si um mínimo histórico, e passaria a valer, no final dessa semana negra, apenas 12 cêntimos. O banco anunciara, dois dias antes, no dia 30, um prejuízo de 3,6 mil milhões de euros só nos primeiros seis meses do ano. Mas nos bastidores passava-se algo mais.

Dos três governantes que assinaram o decreto, apenas Machete tinha, segundo a sua declaração de rendimentos depositada, como a lei exige, no Tribunal Constitucional, alguns milhares de euros investidos no Grupo Espírito Santo. No fundo ES Monetário, Machete investira 10.790,32 euros, em 1436 "unidades de participação". Não era o ministro mais "exposto" ao GES. O seu colega da Defesa, José Pedro Aguiar-Branco, tinha, segundo os dados que declarou em 2011, mais de 370 mil euros, em "aplicações financeiras, fundos, gestão de carteiras, banca-seguros e carteira de títulos". No Governo, alguns secretários de Estado tinham comprado centenas de milhares de euros em dívida do GES. Pedro Pereira Gonçalves, titular da pasta da Inovação, na equipa de António Pires de Lima, na Economia, investira 290 mil euros em obrigações do falido Espírito Santo Banque Privée, que lhe geria também 107 mil euros em fundos, além de 19.492 acções do BES e 200 da Espírito Santo Financial Services. 

Nuno Brito, secretário de Estado da Alimentação, detinha, à data, 100 mil euros em obrigações da Espírito Santo Financial Group, a holding que era dona da maior parte das acções do BES, e que entrou em falência no Luxemburgo após as autoridades daquele país, onde tinha sede, terem rejeitado, em Outubro, um pedido de "gestão controlada".

No total, 16 membros do Governo estavam expostos à queda do grupo liderado por Ricardo Salgado. A maioria destes declarava ter depósitos a prazo e planos poupança reforma. O único que se libertou, a tempo, da sua exposição ao grupo foi António Pires de Lima, ministro da Economia. Quando chegou ao Governo, em Julho de 2013, o ministro deu ordem aos seus bancos para “alienar todos os títulos de acções portuguesas”. Tratava-se de um gesto de transparência, uma vez que Pires de Lima iria tutelar um sector político directamente relacionado com os seus investimentos pessoais. No total, nessa altura, vendeu 80.433 acções do BES, operação pela qual terá recebido cerca de 70 mil euros.

A decisão de poupar os grandes depósitos
O Governo tinha em mãos, no final de Julho de 2014, quando o BES dava sinais de colapso, um problema complicado. Isto, apesar de ter um dos regimes legais mais recentes da Europa, no que diz respeito a processos de falência bancária – por imposição da troika, o regime geral das instituições financeiras fora revisto durante o “processo de ajustamento”. Ainda assim, foi preciso alterá-lo para prever, na prática, um processo como o do BES. Além de aprovar o Decreto 114-A, naquela quinta-feira 31 de Julho, o Conselho de Ministros voltou a reunir-se, desta vez por videoconferência, no domingo 3 de Agosto, para aprovar um novo diploma que alterou a mesma lei: o Decreto-lei 114-B/20014. 

Enquanto a primeira alteração procede a um ordenamento das “perdas”, assegurando que os primeiros a sofrê-las serão os accionistas, seguidos pelos credores (com obrigações subordinadas, por exemplo), o segundo diploma regulamenta os “bancos de transição” – precisamente o estatuto que viria a ser aplicado a parte do BES.

Todas estas alterações, decididas pelo Governo, são inspiradas na legislação comunitária, cuja entrada em vigor estaria prevista apenas para o início de 2015 (em parte) e 2016 (o mecanismo único de resolução, para os bancos sujeitos à supervisão europeia).

Mas algumas diferenças, subtis, existem. Na legislação comunitária há um valor a partir do qual até os depositantes ficam sujeitos a perdas: 100 mil euros. Como explica o site do Parlamento Europeu, “a Directiva Sistemas de Garantia de Depósitos [de Março de 2014] fixa em 100.000 euros o limite de proteção dos depositantes. Exige também que a proteção abranja montantes superiores, caso existam saldos temporariamente elevados resultantes, por exemplo, de vendas imobiliárias”. Na legislação portuguesa aplicada ao BES, todos os depositantes foram defendidos. 

A possibilidade de impor perdas aos cidadãos com mais de 100 mil euros num banco, explica uma fonte de Bruxelas, deve ser aplicada apenas como último recurso, isto é, após a responsabilização de accionistas e credores.

No caso do BES, os depósitos foram salvaguardados seja qual for o seu montante, com uma grande excepção: os accionistas com mais de 2% do capital e os seus familiares. O Governo aprovou a legislação, e o Banco de Portugal cumpriu-a: “A medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal garante a segurança dos depósitos que tinham sido constituídos junto do Banco Espírito Santo, S.A. Deste modo, não foram afectados quaisquer direitos legais ou contratuais dos depositantes. Os depósitos são integralmente transferidos para o Novo Banco. O saldo dos depósitos permanece intacto e disponível para ser movimentado, sem qualquer restrição.”

O mesmo se passou com titulares de “carteiras de activos”, compostas por acções e outros títulos depositados no BES mas referentes a outras entidades. Carlos Moedas, que era secretário de Estado adjunto de Pedro Passos Coelho quando o BES “fechou”, tinha uma dessas “carteiras discricionárias de títulos”, no valor de 133.527,42 euros. Agora, poucos dias após ter sido confirmado como comissário europeu, Moedas teve de actualizar a sua declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional. E é o único que já aparece como cliente do Novo Banco, a entidade de transição que substituiu o BES.

Se tivesse optado por um processo de resolução bancária como o que foi seguido em Chipre, há um ano, o Governo teria incluído os depositantes com verbas acima dos 100 mil euros naqueles que suportariam o “buraco” das contas do banco. Em Chipre, essa decisão foi tomada por haver muitos desses depósitos (de clientes estrangeiros, na maioria russos). E, mesmo que fosse aplicado esse limite, em Portugal os depositantes só seriam afectados se o “buraco” nas contas do banco o exigisse, o que ainda não é possível estimar. Há seis membros do Governo com valores acima de 100 mil euros no BES. 

Ou, pelo menos, era essa a sua situação quando entregaram a documentação no TC. O PÚBLICO contactou todos os 16 membros do Governo referidos neste trabalho. A todos perguntou se tinham vendido ou transferido acções e verbas entre o momento da declaração pública de rendimentos e a “resolução” do BES. Apenas dois responderam. Nuno Brito afirmou que as suas obrigações da ESFG “foram adquiridas em 2009, não tendo existido qualquer transação ou movimentação até à data”. Miguel Morais Leitão, secretário de Estado adjunto do vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, que é dono de 3091 acções do BES, acrescenta que “numa situação como a actual qualquer accionista é passível de incorrer em perdas”.

De resto, ainda estamos longe de perceber o alcance dessas perdas. António Palhinha Machado, analista financeiro com mais de 30 anos de experiência na banca, lembra que o processo legislativo foi tudo menos transparente. Faltam, por exemplo, “os pareceres dos serviços envolvidos, o registo dos trabalhos preparatórias – enfim, todos os dados que permitam reconstituir o espírito, a vontade e a diligência do legislador”. Para este especialista, “nem a lei sobre cisões e fusões está a ser respeitada”, pelo que todos os actos praticados até agora podem ser alvo de batalhas judiciais.

E, para piorar a situação, decorre uma investigação na CMVM sobre uma possível manipulação de mercado. Os títulos do BES continuaram a ser transaccionados, enquanto decorria o processo legislativo sobre “resolução”. Só às 15h52 de sexta-feira 1 de Agosto foram suspensas as transacções de títulos do banco, por decisão do regulador bolsista, após perderem mais de dois terços do seu valor. O Diário Económico revelou ainda que a Direcção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia publicou, no seu site, uma nota sobre a resolução do BES, a 30 de Julho, três dias antes de a CMVM ter sido informada, e um dia antes da primeira alteração legislativa decidida em Conselho de Ministros. O Banco de Portugal só comunicou ao país a sua decisão a 3 de Agosto.

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