Democracia e o direito à arquitectura

A aprovação do projeto das duas proposta de lei que revogam a 31/2009 contradiz as normas europeias e os princípios que ordenaram o consenso obtido.

Em 2009 foi aprovada na Assembleia da República, por maioria, uma lei que consagrava as qualificações dos arquitetos, arquitetos paisagistas, engenheiros e engenheiros técnicos para a elaboração e coordenação de projetos, coordenação da direção e da fiscalização de obras em Portugal. Esta lei acabou com um decreto, datado de 1973 em que admitia e qualificava qualquer técnico projetista, desde agentes técnicos de desenho a engenheiros e arquitetos a assinarem projetos e dirigirem obras.

A iniciativa de revogação do decreto de 1973 partiu da sociedade civil e reuniu mais de 55.000 assinaturas, petição que daria entrada na Assembleia da República em 2002. A Lei 31/2009, que dá corpo à qualificação dos agentes projetistas e coordenadores da direção e fiscalização de obras, representa o culminar da primeira iniciativa da sociedade civil no processo legislativo em Portugal, representando por isso, para além da sua importância e impacto na paisagem, urbanismo e arquitetura em Portugal, um momento histórico da democracia em Portugal.

Constitui-se como uma ação não partidária e não corporativa e não representa outros interesses que não sejam exclusivamente os do interesse público e da qualidade ambiental. Neste sentido e por esta razão, a revisão da Lei 31/2009 reveste-se de todo o interesse público, terá de ter uma atenção especial pela Assembleia da República pelas alterações ou aditamentos que são propostos e tem o particular acompanhamento por parte das ordens, associações profissionais e instituições de ensino superiores que são direta ou indiretamente envolvidas pela atribuição das qualificações e competências da lei, como pelo reconhecimento formativo e académico dessas mesmas competências.

O consenso alargado obtido em 2009, entre estas mesmas ordens, associações e com os avais e apoio das universidades e politécnicos, representou a possibilidade da emissão da Lei 31, agora em revisão, baseada em princípios de justiça e progresso que purgam pela qualidade das nossas cidades e dos nossos ambientes menos urbanos. A verdade é que este consenso é cada vez mais relevante, apenas após cinco anos passados sobre 2009, mais forte e mais presente, sabendo que nestes últimos cinco anos foram dadas possibilidades a quem, por falta de habilitação própria, tivesse exercido à luz do famigerado decreto de 1973, para obter formação específica ao exercício de tais atos profissionais.

A revisão da lei de 2009, nesta altura, prende-se com questões técnicas e jurídicas, que considerando ainda a estrutura legislativa europeia, a visam modernizar e adaptar. A sua revisão, nesta altura, possibilita, no entanto, um reavivar de memórias de outros tempos, em que por falta de arquitetos e engenheiros a elaboração de projetos não era regulamentada nem devidamente reconhecida a profissões competentes. Acresce que o processo legislativo iniciado com esta revisão permite também um aproveitamento político baralhando oportunismo partidário com justiça política e social.

Na Europa a que pertencemos, para o bem e para o mal, o reconhecimento destas competências está descrito nas diretivas, regulando-se algumas profissões consideradas vitais para a saúde pública e para a qualidade ambiental. Nestas profissões, uma das regulamentadas é a de arquiteto. Reconhece-se que a profissão de arquiteto, para bem da sociedade e do interesse público, é a única própria à elaboração de projetos de arquitetura e estabelecem-se os níveis de formação e matérias disciplinares a que a sua formação terá de corresponder para que possa ser reconhecido, de forma automática e em todos os países da União Europeia, como um profissional arquiteto. A aprovação do projeto das duas proposta de lei que revogam a 31/2009, que deram entrada na Assembleia da República e que já foram aprovadas na generalidade, sendo agora objeto de trabalho na especialidade pelo Grupo de Trabalho do Sector da Construção da Assembleia da República, contradizem as normas europeias e os princípios que ordenaram o consenso obtido pela Lei 31/2009.

Para que não haja contradição, esta revisão não deverá alterar os princípios e consensos obtidos na referida lei ainda em vigor, mas apenas atualizá-la nos seus pontos jurídicos por forma a responder mais eficazmente à realidade normativa europeia e nacional. Este processo de revisão da lei não deverá, nem poderá, ser utilizado como uma ferramenta partidária, embora, pelas razões da sua modernização, significado e alcance, seja sempre uma opção política. No entanto, essa opção política foi já tomada em 2009, após abrangente discussão pública e partidária a partir de 2002. Essa opção não é colocada em causa pela presente revisão legislativa e caso o seja terá de ser submetida, da mesma forma que o foi entre 2002 e 2009, a uma forte discussão pública e política que não descure em oportunismos corporativos e partidários.

Assim sendo, o projeto das propostas de lei n.º 226/XII e 227/XII, que deu entrada na Assembleia da República como as normas de revogação e modernização da Lei 31/2009, deverá e terá de transpor todas as habilitações e exclusões contidas nesta última, salvaguardando uma ação legislativa completamente fundamentada nos princípios de um Estado democrático e concentrar-se apenas e exclusivamente na sua clarificação e compatibilização com o corpo jurídico europeu e nacional.

Arquitecto, professor auxiliar na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa e vice-presidente da Ordem dos Arquitectos Portugueses

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