O lugar do desassossego

A crise vista pelo olhar de Ana Vieira

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Um estado transitório, de desequilíbrio, desassossego

Há, nesta exposição, um filme de animação que parece ocupar o lugar principal. Impõe-se à vista, condiciona a iluminação, mergulha o ambiente da galeria na penumbra. O desenho da menina a fugir do seu suporte é, na realidade, uma projecção em vídeo em três planos do piso inferior do espaço. Representa, no traço estilizado da animação infantil, uma menina que corre ininterruptamente.

No piso superior, contudo, resguardado das primeiras impressões por uma parede, reencontramos uma peça que nos recorda os Ambientes dos primeiros tempos da prática artística de Ana Vieira. Há um chão de linóleo, cadeiras que se desfizeram e voltaram a montar. Gesso, mobiliário e uma montagem que se apropria da banalidade e da transparência dos espaços públicos: estamos no universo familiar desses primeiros trabalhos, os mesmos que traduziam um olhar educado, conhecedor e crítico sobre o quotidiano da mulher artista e os códigos do gosto. Sala de espera. Os móveis a afirmarem a sua inutilidade, o nome desta peça, completa-se com Os móveis a afirmarem o seu desígnio, conjunto de duas fotografias de peças de mobiliário intervencionadas com forro de estofador.

Os títulos das peças, como o nome que a artista deu à exposição, traduzem um estado transitório, de desequilíbrio, desassossego. Moritz Elbert, que assina um dos dois textos de sala, fala, aliás, deste desassossego que, afinal, traduz uma tensão física, plástica. Não estamos, e isto concentrando-nos apenas numa leitura exclusivamente formal das peças, no interior de uma disciplina artística precisa. Não se trata exactamente de fotografia, nem de escultura, nem de desenho, embora todas as obras convoquem alternadamente ou simultaneamente todas ou algumas destas disciplinas. A presença do gesso, por outro lado, remete-nos para um branco que, de tão visível (todos sabemos que o branco é a luz máxima, fusão de todas as cores do espectro solar), se torna invisibilidade. A mesma invisibilidade que, agora noutro nível de leitura, transmite o título da instalação principal da exposição: Sala de espera.

Uma sala de espera, com efeito, é um lugar de transitoriedade, de angústia, de passagem. Por norma, não transmite conforto, repouso ou apaziguamento. Não é lugar destinado a ser visto, mas sim a ser usado. Dito de outra forma, trata-se de um não-lugar, uma estrutura repleta de sentidos e significados diversos consoante quem nela passa: o utente transitório, ou aquele que ali trabalha.

Dito isto, o não-lugar partilha dessa inconstância que todos os títulos das peças denotam. Ana Vieira, num texto escrito propositadamente para a exposição, assinala que os seus trabalhos apenas raramente lhe são sugeridos por memórias. Pelo contrário, a inspiração e a motivação para criar tem as suas raízes nas vivências de todos os dias. Inquietação, afirma, está directamente relacionada com a crise, uma crise “de total desmoronamento e tensão, e sem saída à vista, o que nos deixa pouco espaço para podermos ser pessoas inteiras”. Mais interessante é a constatação de que a criação artística lhe permite olhar para esta “obsessão” de uma “forma mais distanciada”. Ou seja, a arte não serve para ilustrar ou comentar, mas para colocar em perspectiva, distanciar, esclarecer, resolver uma tensão ou uma inquietação. À instabilidade da crise, que perpassa na implosão de todos os objectos reunidos aqui (imagem da menina a correr, móveis desfeitos ou fotografias esventradas), a artista contrapõe a distância que criou entre si e o objecto do seu trabalho.

As “pessoas inteiras” de que Ana Vieira fala, ou os objectos familiares que são sempre prolongamento de um corpo, fragmentam-se assim simbólica e concretamente na obra da artista. Este estilhaçar, só possível de ser pensado através da arte, remete-nos também para a própria origem da palavra crise: um agudizar da doença, um desequilíbrio das funções fisiológicas do corpo, uma tensão orgânica que está condenada, por definição, a resolver-se de um modo qualquer. Assim, este corpo sempre subentendido acaba por ser a escala que dá a medida à obra artística. Corpo da artista, corpo de todos nós, vítimas da crise, é ele o verdadeiro lugar da inquietação. 

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