Por que é que o vírus do ébola não é um embuste e deve ser levado a sério

Espero que o vírus do ébola não dê em nada, pois significará que a campanha de informação e contenção epidémica resultou.

Após a leitura de alguns artigos de opinião e comentários nas redes sociais que sugerem que as campanhas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras entidades em relação ao vírus do ébola não são justificadas e que não passam de um embuste – argumentando que “será como a gripe das aves”, que no final “não deu em nada” –, devo dizer que apoio a atitude da OMS, dos Centros para o Controlo e Prevenção das Doenças (CDC) dos EUA e do Centro Europeu para Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC). Digo mais: espero que não dê em nada, pois significará que a campanha de informação e contenção epidémica resultou.

Há motivos para pânico? Quanto a mim, até à data, não. Há motivos para estar atento e levar isto a sério? Bastantes. Para perceber o potencial epidémico da infecção do vírus do ébola, é necessária uma pequena caracterização do vírus.

Há cinco vírus que pertencem ao género Ebolavirus. Destes cinco, quatro foram responsáveis pelos vários surtos de febre hemorrágica por ébola (FHE) em humanos desde 1976. A espécie do vírus responsável pelo surto actual de FHE na República da Guiné, Libéria e Serra Leoa é o Ebolavirus zaire, ou vírus do ébola. Desde a documentação dos primeiros casos de FHE (em Yambuku, no antigo Zaire, actual República Democrática do Congo, em 1976), a percentagem de mortalidade é superior a 80%.

Sabe-se que o vírus do ébola pode infectar variados mamíferos e que a infecção não gera FHE em todas as espécies. A hipótese mais provável para as transmissões é que todos os surtos descritos desde 1976 até hoje tenham resultado de zoonoses independentes (transmissão de animais para humanos). Apesar de não ter havido uma magnitude de estudos devido a escasso financiamento, pensa-se que os morcegos-da-fruta são o hospedeiro natural do vírus do ébola. Fica a clarificação de que os morcegos-da-fruta não sucumbem à doença e esta infecção é endémica neles.

Através do contacto com animais infectados, entre os quais a preparação para o consumo alimentar, é possível a passagem do vírus de animais para humanos. É este o momento crucial à propagação de um vírus numa nova espécie. Apesar de na maior parte dos casos a infecção não resultar numa alta disseminação, pois nem sempre consegue ultrapassar a “barreira da espécie”, é sempre possível uma transmissão com potencial epidémico de grandes dimensões caso a transmissão humano-humano seja possível e eficaz. Um exemplo é o VIH/sida em que foram documentadas pelo menos 12 transmissões a partir de primatas, mas somente uma é a maior responsável pela epidemia global que actualmente infecta cerca de 35 milhões de pessoas.

Ora, tal como o VIH e o vírus da gripe, os Ebolavirus são vírus de ARN, o que significa que têm uma grande capacidade de mutação e adaptação. Nos anteriores casos de FHE, o curto período de incubação associado com um grande grau de mortalidade levou a que todos os surtos tenham acabado por ser dominados com um número de mortos inferior ao surto actual.

A necessidade urgente em actuar por parte da OMS e de entidades locais, além do alto grau de mortalidade, reside quanto a mim no facto de que o número de novas infecções ser significativamente maior do que nos surtos anteriores com um crescimento exponencial. Este facto sugere que esta estirpe do vírus do ébola tem um potencial de transmissão entre humanos maior do que os surtos anteriores.

Uma indicação desta probabilidade foram os casos de transmissão à auxiliar de enfermagem espanhola e à enfermeira texana. Nestes casos, apesar da utilização de material apropriado após alegados pequenos erros por parte dos visados, o vírus foi capaz de infectar novos hospedeiros, estando assim bastante adaptado à transmissão entre humanos.

O vírus do ébola tem a capacidade de infecção de células epiteliais (ao contrário do VIH), o que leva a que o contacto de fluidos corporais (saliva, muco, vómito, fezes, transpiração, lágrimas, leite materno, urina e sémen) com o nariz, a boca, os olhos ou feridas de outrem possa resultar na transmissão. Adicionalmente, um indivíduo que tenha sobrevivido à FHE poderá transmitir o vírus sexualmente, já que o vírus estará presente no sémen até três meses após o desaparecimento dos sintomas.

Esta doença é conhecida há quase 40 anos, mas não foi dada a devida prioridade ao desenvolvimento de uma terapia e conhecimento do vírus. Apesar da actual tentativa de desenvolvimento de vacinas e medicamentos antivirais, não há nenhum tratamento que tenha sido completamente testado e aprovado. Esta é mais uma das razões para concordar com campanhas de informação e contenção desta infecção. Curiosamente, sem tratamento ou vacina não vejo como é que uma grande empresa farmacêutica poderá obter altos lucros.

Virologista e biólogo molecular da Northwestern University, em Chicago, especialista em VIH e transmissões virais interespécies

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