Juízes acusam Governo de gerir o Citius contra lei que atribui esse poder à magistratura

Lei dá poder de gestão à magistratura, mas cúpula da justiça discorda. Constitucionalistas denunciam violação da separação de poderes. Comissão parlamentar dá razão às preocupações dos juízes.

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A investigação da PJ de Faro, que começou na sequência de uma denúncia anónima, já decorria desde 2014 Fernando Veludo/NFactos

Um big brother que vigia todos os processos judiciais a qualquer hora e momento, interferindo quando e como quer, bastando para isso um mero clique num computador. Os juízes garantem que o Governo consegue, se quiser, encarnar essa figura e aceder a todos os dados confidenciais que passam pelos tribunais e que o segredo de justiça e reservas da vida privada não são obstáculos.

Em causa está o facto de ainda ser o Ministério da Justiça (MJ), através do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), quem gere a plataforma informática Citius, tendo poder sobre todo o sistema, apesar de uma lei de 2009 restringir à magistratura a gestão dos dados.

“Essa lei não está a ser cumprida e nesta circunstância a situação deixa o poder judicial cativo do poder político. É inadmissível e perigoso. Devem ser os magistrados a gerir o que é da magistratura”, defende a secretária-geral da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), Maria José Costeira.

Os juízes não conhecem exemplos dessa interferência, mas a mera hipótese e suspeita bastam para se sentirem observados nas suas decisões e afectados na sua independência consagrada na Constituição. Suspeitas que materializadas podem significam o ruir de um pilar forte do Estado de Direito.

“Não sei se não há promiscuidade. Talvez isso explique algumas fugas de informação e comportamentos estranhos em processos em que o Governo ou alguns dos seus membros são visados”, aponta o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos, lembrando que “no processo Freeport, que envolveu [o então primeiro-ministro] José Sócrates, houve insinuações disso”.

O professor de Direito Constitucional e director do Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade do Minho, que dá razão à ASJP quando diz que esta situação “viola o princípio constitucional da separação de poderes”, não concretiza a referência a Sócrates. Mas em 2009, o então primeiro-ministro repudiou “a campanha negra orientada por poderes ocultos” que tinham por base “notícias difamatórias” assentes em fugas de informação selectivas e manipuladas”.

A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, diz que no Citius não estão processos-crime, sendo a maior parte dos dados inseridos de natureza cível. Mas fontes do Ministério Público (MP) garantem que, com excepção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, que não usa a mesma aplicação, os restantes DIAP do país usam o Citius.

Outros constitucionalistas contactados pelo PÚBLICO consideram que a possibilidade de o MJ aceder aos dados no Citius viola o princípio da separação de poderes. “Parece-me grave que a situação continue. Viola flagrantemente a Constituição. O poder político não pode ter acesso a esses dados. Nem como mera hipótese”, diz o professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Jónatas Machado. O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia também fala em “violação da separação de poderes” e realça que é necessário que “o Conselho Superior da Magistratura (CSM) tenha autonomia financeira com um orçamento próprio”. Sem isso, “não há verdadeira independência”. Aliás, os juizes defendem um CSM com orçamento e funcionários, entre eles, informáticos.

Não há problema, diz Governo
Já o penalista Costa Andrade alerta que o “risco de violação dos dados dos processos tanto pode ocorrer estando a sua gestão a cargo do MJ como a cargo do CSM. Gomes Canotilho alerta que o CSM não tem só juízes, mas também “elementos nomeados pela Assembleia da República”. Defende, no entanto, “que a lei tem de ser cumprida”.

Para o MJ, porém, não há qualquer problema. Sem reagir à acusação de que não está a cumprir a lei, diz apenas que “não se está a ver como é que” se tem acesso “a todo o momento à informação constante dos processos, a não ser que a senhora secretária-geral da ASJP desconfie do profissionalismo, competência e estatuto dos oficiais de justiça”. Os técnicos do IGFEJ, que “operam a manutenção e gestão” do Citius, são equiparados a “oficiais de justiça” vinculados ao segredo de justiça.

A garantia não descansa os juízes. “Em tese somos todos sérios, mas é melhor que a gestão do Citius esteja na magistratura. Só assim se cumpre a separação de poderes”, insiste Maria José Costeira. “Como se pode aceitar que o MJ tenha acesso a todo o momento aos processos, mesmo que tenha sido determinado pelo juiz que o processo é confidencial?” A questão levantada pela magistrada no último congresso de juízes, em Outubro, em Tróia, arrancou aplausos dos quase 400 juízes presentes. As críticas a falhas de segurança e modo de gestão do Citius não são novas, assim como não é nova a lei que, na opinião de procuradores e juízes, resolveria a questão.

Em Maio de 2009, Sócrates, o presidente da Assembleia da República Jaime Gama e o Presidente da República Cavaco Silva assinaram a lei do Regime Jurídico Aplicável ao Tratamento de Dados do Sistema Judicial. A lei passa a gestão dos dados nos processos para o CSM, o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a PGR, e o Conselho para o Acompanhamento dos Julgados de Paz, dependendo do tipo de processos e a fase em que estão. O MJ desenvolve apenas “as aplicações informáticas”.

Ou seja, “o MJ desenvolve o sistema e entrega-o aos conselhos. Não pode gerir nem ter acesso às bases de dados que são os processos. É o mesmo que dizer o MJ gere os edifícios dos tribunais, mas não pode ter acesso aos processos que lá estão”, diz o presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, Rui Cardoso. “Não tenho dúvidas de que a lei estabelece isso e de que não está a ser aplicada. A gestão dos dados pelo MJ está a ser feita em desrespeito pela lei e pelo Estado de Direito.”

Também a Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, que preside ao CSMP, diz estar a fazer um levantamento “das questões suscitadas pelo uso do Citius” no “âmbito dos processos de inquéritos e judiciais”. A lei dava um prazo de dois anos às necessárias “adaptações técnicas” para a gestão dos dados passar para a magistratura.

O órgão máximo da magistratura judicial não alinha neste ponto com os juízes que gere e tutela disciplinarmente. Isto apesar de ter votado em Setembro a criação de um grupo de trabalho para “estudar a possibilidade de transferência de instrumentos necessários para o exercício de competências de gestão dos tribunais próprios do CSM, a começar pelos meios informáticos”. Um dos elementos do CSM, Joel Ramos Pereira, justifica que a lei atribui ao CSM o poder para autorizar “a gestão do tratamento” dos dados, mas não “poderes de intervenção directa” no sistema.

A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República tem, contudo, outra opinião. O seu presidente, Fernando Negrão (PSD), que considera “legítimas as preocupações dos juízes”, não tem dúvidas de que a lei “pura e simplesmente não tem funcionado”. Para o deputado, existem, aliás, razões para alterar a lei para melhorar a sua eficácia.

O deputado garante que a Comissão para a Coordenação da Gestão dos Dados referentes ao Sistema Judicial, onde o CSM diz ter o juiz Joel Ramos como representante, não existe na prática. Deveria fiscalizar a gestão e a fiabilidade dos dados inseridos no Citius, mas os seus elementos não reúnem desde a tomada de posse em 2010.

“O não funcionamento desse órgão” acontece “não só por ausência de indicação de membros por parte de órgãos ligados à Justiça, como também por demissões sucessivas”, explicou Negrão, salientando que “todos os deputados” na 1.ª Comissão consideram “grave a situação” e que “é necessário pôr cobro ao actual estado de coisas”. O gabinete da Presidente da Assembleia da República remeteu respostas para a 1.ª Comissão. “Admitimos em último caso recorrer ao Presidente da República”, afirma Maria José Costeira. Para já, os juízes estão a reunir com os partidos no Parlamento.

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