Caldeirão eleitoral

A consequência direta do baixo nível do debate será debitada aos próprios partidos envolvidos e virá na forma de descrença, descrédito, desconfiança.

Uma onda de calor flerta com os 40 graus nesta primavera eleitoral brasileira. As altas temperaturas estão agravando ainda mais o desconforto provocado pela longa estiagem que faz evaporar os recursos hídricos deste país abençoado pela fartura de nascentes e corredeiras. Em São Paulo, a seca drenou a reserva de água que abastece boa parte da imensa região metropolitana em torno da capital. Tanto que os moradores já se habituaram a acompanhar o índice de disponibilidade do principal reservatório, agora na assustadora marca dos 5%, ao mesmo tempo em que experimentam a fervura do debate eleitoral. Há um clima de exasperação no ar.

Como se viu no primeiro turno,  os institutos de pesquisa mais tradicionais do país erraram bastante as sondagens de intenção de voto. Em território paulista, onde o Partido dos Trabalhadores sofreu sua principal derrota, os eleitores andam confessando temores sobre o que acontecerá com suas torneiras e chuveiros tanto quanto suas dúvidas sobre quem sairá vencedor no próximo dia 26, data do segundo turno da eleição presidencial. 

Há pesquisas para todos os gostos: as que dão conta de empate entre Aécio Neves, do PSDB, e a presidente Dilma Rousseff, do PT, as que dão boa vantagem para Aécio e outras que apontam Dilma na dianteira. Inseguros sobre as tendências, partidários de uma e outra candidatura tratam de manter o debate aceso. E, por debate, entenda-se a troca de acusações em forma de ataques desmesurados contra os vagos pontos do programa de governo de um e de outro.

Foi para uma população já estressada pelas más notícias na economia e na meteorologia que a presidente Dilma envenenou o ambiente pré-eleitoral ao nele introduzir, no último fim de semana, a fatídica palavra golpe. Acossada pelas denúncias de um gigantesco esquema de corrupção naquela que já foi a maior empresa brasileira, a Petrobrás, a Presidente resolveu chamar de golpista o que considera vazamento seletivo do conteúdo da delação negociada com a Justiça pelo principal operador do esquema, preso até poucos dias atrás depois de investigação da Polícia Federal. 

De fato, logo no início da campanha parte do que deveria ser protegido por sigilo de justiça vazou para uma importante publicação semanal.  A bomba explodiu no seio do PT disparando estilhaços na direção de nomes de dirigentes partidários, parlamentares e governadores da coligação no poder.

Mas a queixa da Presidente era inconsistente. O que os jornais vinham publicando era o depoimento do acusado diante do juiz federal que cuida do caso num processo de acesso público. A divulgação em áudio do depoimento daquele principal implicado nada tinha de irregular que possa ser classificado como golpismo ou mesmo oportunismo eleitoral. Estarrecedor foi ouvir a voz do acusado a descrever com frieza como porcentagens dos milionários contratos eram divididos entre os partidos. A manobra de Dilma ao denunciar um golpe do judiciário mancomunado com a imprensa acabou parecendo mais uma tentativa de desviar o foco das cruas denúncias.

Com aquela declaração, Dilma talvez tenha levado até ao ponto mais alto a quentura de uma campanha já de enredo bastante dramático. A inclemente desconstrução da candidatura de Marina Silva, herdeira da cabeceira da chapa dos socialistas depois do acidente que matou Eduardo Campos, ex-governador de Pernambuco, produziu machucaduras profundas ao longo do período. A tática petista foi eficiente para tirar Marina do primeiro turno, mas não para agregar ao PT os votos dados a ela. As pesquisas subsequentes ao primeiro turno mostraram que mais de 60% desses eleitores migraram automaticamente para o campo do PSDB.

Se a candidatura de Aécio ficou mais robusta para o enfrentamento da reeleição de Dilma, nem por isso a militância organizada dos petistas e os marqueteiros do partido parecem ter aprendido a lição. Agarrada a fiapos de declarações de assessores de Aécio ou ao seu propositadamente vago programa de governo, Dilma vem assustando o eleitorado com uma visão apocalíptica do país no caso de sua derrota.  

O truque é visível para os mais velhos. Ao comparar os excelentes resultados sociais e econômicos da gestão petista – que inclui os bons anos do Governo Lula – com os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, a campanha de Dilma abusa de uma falsa simetria para desespero dos analistas econômicos. Os percalços enfrentados durante a implantação do plano econômico que tirou o Estado brasileiro de seu secular atraso macroeconômico não são passíveis de comparação com o período crítico que Dilma enfrentou após o desastre mundial de 2009. Com esse desvio tático, a discussão sobre projetos e medidas para o próximo governo acabou soterrada pelo temor e pela sugestão de um desastre iminente em qualquer um dos resultados eleitorais possíveis.

Uma pena. Os slogans dos candidatos diante do resultado pífio do crescimento da economia e das ameaças decorrentes sobre empregos e salários dos trabalhadores não poderiam ser mais vazios. Do lado de Dilma resume-se a “Governo Novo, Ideias Novas”, seja o que for que esteja aí contido. Já Aécio surfa uma genérica "Onda da Razão", sabe-se lá o que ela contém em seu movimento.

Os brasileiros se vêem forçados a buscar por própria conta uma iluminação para suas escolhas. Não há nada de errado nisso, é óbvio. Mas a consequência direta do baixo nível do debate será debitada aos próprios partidos envolvidos e virá na forma de descrença, descrédito, desconfiança. Seja quem for o vitorioso, a construção de um diálogo posterior ao anúncio do vencedor da corrida ao Palácio do Planalto será difícil. Não apenas para religar as chamuscadas conexões com os diferentes grupos sociais, como também para estabelecer uma forma de trabalho com o Congresso ainda mais conservador e pouco representativo que emergiu das urnas.  

Os historiadores dizem que o Brasil sempre se encontra diante da encruzilhada entre duas tradições ideológicas: uma que defende o protagonismo do Estado em favor da população explorada por uma elite oligárquica e predatória, e outra, mais liberal, que prega um Estado com poucos tentáculos, menos corrupto e patrimonialista, para que indivíduos e mercado tenham liberdade para normatizar suas relações. De um modo ou de outro, escreveu num artigo publicado pelo jornal O Globo o pesquisador Christian Eduard Cyril Lynch, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, essas tradições vêm se adaptando aos modelos partidários vigentes em cada época, atualizando seu discurso e modulando o debate.

A história das eleições democráticas depois do fim da ditadura militar confirma essa polarização. O pêndulo da escolha dos brasileiros vem alternando seu movimento com sabedoria. Não importa de quanta mistificação candidatos presidenciais se ocupem. Os eleitores têm conseguido conter os excessos de um ou de outro modelo fazendo as correções necessárias a cada vez em que são chamados às urnas.  

Jornalista da Globo News

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