A beleza da hierarquia em movimento

A estreia de Hierarquia das Nuvens, de Rui Horta, encheu o Grande Auditório da Culturgest

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Hierarquia das Nuvens distancia-se de peças anteriores onde a teatralidade, o drama, o movimento e o audiovisual se impunham pela via mais vistosa MARIANA SILVA/CORTESIA CULTURGEST

Escuridão sobre o público; luz no palco silencioso e vazio; uma mulher sai da plateia e entra naquela página branca, montando ao fundo, no chão, uma nuvem de papel. Assim começa Hierarquia das Nuvens, nova peça de Rui Horta, em colaboração com um elenco de sete bailarinos exemplares, que tem como palavra-chave o espaço.

A construção dinâmica do espaço, pela localização e deslocação dos intérpretes em cena, é um atributo da dança reconhecido e teorizado. Rui Horta trabalhou esse atributo habilidosamente e conjugou, com o comportamento formal dos corpos, elementos cénicos discretos – de luz ou materiais – que acentuam os traços da arquitectura coreográfica.

Na dança dos bailarinos reside um vocabulário amplo como alongamentos cortantes de braços, gestos dissolvidos em acentos ritmados, passos extensos e rápidos rematados por enraizamentos longos. Às vezes irrompem convulsões e trejeitos expressivos do plano emocional e invisível (sobretudo em Bertoncelli, Marrafa e Sanger). Permanece uma ambiguidade entre a forma corporal exterior, virtuosa e definida, e os estados psicológicos mais profundos e sombrios. Na combinação de atmosferas interiores com iluminação e materiais aparecem esboços de lugares; eles são indefinidos mas reais, tal como o conceito de heterotopia de Foucault, inspiração fundadora desta obra, pretende definir: um espaço onde diferentes valores se sobrepõem e alternam; lugares vários onde o desvio, a diversidade e a mutação acontecem.

Uma das mais belas concretizações desta ideia é o momento em que uma mulher (da Silva) está num espaço interior, iluminado pelo candeeiro de rua. Duas sombras acompanham-na; a feminina (Peraltinha) espelha-a e dá-lhe conforto, a masculina (Cabral) confronta-a e exalta-a. Eventualmente ela abandonará ambas. 

A partitura coreográfica é complexa e individualizada, apesar dos contágios pontuais que geram cânones ou breves uníssonos. Esta distribuição permite que nos concentremos em cada corpo e faz igualmente um subtil retrato da sociedade actual: vivemos no mesmo lugar e temos sentimentos semelhantes mas reforçámos, sem dúvida com a informática portátil, a fronteira que separa o “tu” do “eu”. No palco a comunicação é sempre indirecta e, apesar de alguns confrontos ou afeições, nenhuma relação é assumida; eles co-habitam sempre sós, convivendo num paradoxo.

Em estreia mundial este espectáculo de Rui Horta distancia-se de peças anteriores onde a teatralidade, o drama, o movimento e o audiovisual se impunham pela via mais vistosa como forma fundamental de interpelar o espectador; com ímpeto e mensagens fortes.Uma feliz inovação é a representação do género: aqui o masculino é louco mas terno e o seu protagonismo não depende nem do poder nem do exibicionismo; e no feminino acentua-se a determinação e a revolta, rejeitando os estereótipos da submissão, da sexualidade, ou da responsabilidade.

Hierarquia das Nuvens é uma peça sólida em conteúdo que articula muito bem o conceito criado para idealizar uma sociedade com pontos de fuga à autoridade e à repressão. A sua eficácia e diferença assentam muito na limpeza e na subtileza; será melhor apreendida pelas qualidades formais e impressionistas pois a interpretação do significado tem menor importância. É para ficar em movimento e em suspensão, talvez reflectindo sobre a flutuação do poder e da norma; como deve ser nas nuvens!

Após esta estreia em Lisboa a peça segue em digressão nacional e internacional já a partir de dia 18, passando por Guimarães, Torres Novas, Oliveira do Bairro e Madrid, entre outras apresentações. 

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