Rui Horta tinha saudades da dança

Nova peça estreia-se nesta sexta-feira na Culturgest, em Lisboa. Hierarquia das Nuvens é “movimento puro”.

Em "Hierarquia das Nuvens" há uma forte presença do feminino
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Em Hierarquia das Nuvens há uma forte presença do feminino Mariana Silva/Cortesia Culturgest
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Em Hierarquia das Nuvens há um regresso, sem saudosismos nem arrependimentos. É o regresso a um gesto inicial, a uma maneira de trabalhar o corpo e o espaço que, em vez de prender o seu criador ao passado, vem mostrar que o que ele sente é uma certa saudade daquilo que ainda está para vir.

Sim, Rui Horta admite que tinha saudades de coreografar para um grupo, de voltar a um “movimento puro” em que, secundarizados outros recursos cénicos, é o intérprete que se impõe. “Sinto-me em contracorrente”, explicava esta quinta-feira ao PÚBLICO ao início da manhã, véspera da estreia em Portugal de Hierarquia das Nuvens (apresentou-se primeiro em Dresden, na Alemanha, e está sexta-feira e sábado na Culturgest, em Lisboa, a partir das 21h30). “Hoje, em geral, há pouca generosidade do corpo em palco. Dança-se menos.”

Rui Horta também tem dançado menos. As suas últimas criações, à excepção de Danza Preparata – solo-homenagem a John Cage que criou para a bailarina Silvia Bertoncelli a partir das Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado do compositor americano –, têm sido sobretudo teatrais. Foi assim, por exemplo, com Multiplex, em que transformou o actor Pedro Gil no imperador de Memórias de Adriano, obra maior da escritora belga Marguerite Yourcenar. “Tenho trabalhado muito a transdisciplinaridade porque sou, por natureza, curioso em relação a vários meios e discursos, mas agora apetecia-me tentar perceber onde está a minha linguagem coreográfica depois de tanto tempo, o que é que é feito dessa voz.”

O início deste regresso não foi fácil, explica, mas os três meses de residência com os sete intérpretes no Espaço no Tempo, o centro artístico de Montemor-o-Novo que dirige desde 2000, foram essenciais neste processo, em que andou à procura dos limites da criação coreográfica essencial. “No princípio houve um embate com estes sete corpos sem artifícios, sem bengalas, mas depois o ritmo de trabalho foi tomando conta das coisas. O contributo dos bailarinos levou-nos a construir uma peça que é muito autêntica, agarrada aos corpos, mas menos formal, menos espectacular.”

Em Hierarquia das Nuvens Rui Horta e o elenco – Filipa Peraltinha, André Cabral, Teresa Alves da Silva, Samuel Retortillo, Silvia Rjymer, Phil Sanger e Silvia Bertoncelli – criaram uma partitura rigorosa em que cada um, embora trabalhe para um todo desprovido de qualquer narrativa, mantém a sua individualidade enquanto intérprete. A peça, que se pretende positiva, optimista, vem falar de uma capacidade inerente ao ser humano, preparado, apesar de tudo, para renascer, para continuar em frente.

O enquadramento teórico desta nova criação – Horta está sempre rodeado de música e de livros quando compõe – é dado por Michel Foucault e pelo conceito de heterotopia desenvolvido pelo filósofo francês. Para este criador que se sente sempre coreógrafo, mesmo quando está a trabalhar numa ópera ou a desenhar luzes, a “heterotopia” foi aqui fundadora porque “fala de lugares reais e imaginados, físicos e mentais”, e ainda do desejo contante da viagem, mesmo quando ela se faz no sofá de casa, com um livro ou um filme. “A heterotopia é também uma vontade de mudança, de viagem, uma possibilidade de construção de mundos transitórios. Todos nós queremos estar noutro lugar, mas não sozinhos.”

O teatro – espaço físico de palco e plateia – é uma “heterotopia brutal”, porque nele se criam permanentemente realidades alternativas. É nele que a coreografia se tem revelado também um motor de invenção: “Nos últimos 15 ou 20 anos a dança tem sido a mais rica, mais arriscada e mais versátil forma de inovação cénica.” E essa inovação, parece dizer agora o criador português, pode passar pelo mais essencial dos seus elementos – o movimento.

Rui Horta é um viajante: dez anos de EUA, outros dez de Alemanha e mais 15 de Montemor-o-Novo, trocados há pouco mais de um mês por Lisboa, onde mora agora. “Ninguém tem uma história que não seja partilhada, daí também a peça de grupo”, diz, a primeira em 20 anos que tem mais mulheres do que homens em palco. Isto porque imagina o futuro no feminino. Alves da Silva e Bertoncelli, por exemplo, assumem sem esforço esse protagonismo. Os seus corpos parecem estar ali para mostrar que a sociedade em que vivemos pode ser sobretudo mental ou virtual, mas que há nela um lado físico que transborda e que pode chegar a vencer.

“Para progredirmos temos de caminhar – o caminho é uma realidade física. Ninguém caminha só com o pensamento. Para andar é preciso usar as pernas.” Andar é uma atitude coreográfica, deixaram escrito os revolucionários da dança nos anos 1960/70. Hierarquia das Nuvens dá-nos sete corpos que caminham.

 

 

 

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