Médico que tratou espanhola com ébola denuncia falhas e coloca-se em isolamento

O mundo “falhou miseravelmente” na sua resposta à epidemia que já matou quase 3900 pessoas na África Ocidental, diz o presidente do Banco Mundial. A crise vai ficar muito pior, avisa.

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Membros de uma equipa sanitária chegam a casa de Romero, já depois de a enfermeira e de o marido terem sido internados Pedro Armestre/AFP

É um relato solitário e cheio de faltas de informação aquele que o médico Juan Manuel Parra, adjunto das urgências do Hospital de Alcorcón, em Madrid, faz das 16 horas que passou a assistir Teresa Romero, auxiliar de enfermagem, o primeiro caso de contágio de ébola fora de África. A descrição, por escrito, inclui o uso de um fato de segurança demasiado curto e foi feita pelo próprio antes de pedir para ser colocado em isolamento no Hospital Carlos III da capital espanhola.

“As mangas estavam curtas”, conta Parra, de 41 anos, explicando só ter mudado para o equipamento de maior nível de segurança disponível no hospital (uniforme completo, com máscara, óculos, dois pares de luvas e cobertura para os sapatos) às 17h, altura em que é informado da possibilidade de se tratar de um diagnóstico positivo de ébola, nove horas depois de ter começado a atender Romero, cujo estado não parava de piorar. O médico teve de tirar e voltar a colocar o fato de protecção pelo menos 13 vezes, considerando, por isso, que esteve em risco de contágio.
 
À chegada de Romero, que avisou ter tido contacto com o vírus, é o próprio Parra que activa o protocolo para estes casos e a envia para um quarto de isolamento – isto, depois de a auxiliar ter sido transportada numa ambulância convencional. 

O condutor da ambulância e o maqueiro que levaram a enfermeira avisaram o Departamento de Saúde de Madrid que a paciente dizia ter ébola, mas este aviso não foi levado a sério porque um médico de uma unidade de Atendimento Domiciliário que a vira meia hora antes a encontrou com 37,2 graus de temperatura, em vez dos 38,6 que fazem soar o alarme e descartou essa possibilidade. 

Assim, das duas viaturas disponíveis, a empresa de ambulâncias Safe Eurolimp enviou o modelo convencional (sem equipamento para doentes contagiosos). O maqueiro que a recolheu fê-lo com máscara, luvas e uma bata de papel. A ambulância, que não foi desinfectada, ainda recolheu outros sete pacientes.

Durante todo o dia de segunda-feira, em casa e no hospital, Romero (que entretanto já teve o seu cão abatido) nunca parou de dizer que tinha ébola e de alertar o pessoal médico para o perigo de contágio. Mas o conselheiro de Saúde da Comunidade de Madrid, Francisco Javier Rodríguez, responsabiliza a auxiliar,  acusando-o de ter ocultado ao médico e às pessoas que a assistiram antes disso que tratara dois sacerdotes repatriados de África (um morreu em Agosto; outro em Setembro).

Protecções insuficientes
Já no Hospital de Alcorcón, o problema, para além dos equipamentos de protecção disponíveis serem pequenos, foi o tempo que demorou até que os resultados das análises chegassem ao médico, que acabou por saber destes através pelos jornais.

Durante as primeiras horas, até os sintomas se agudizarem e Parra pedir para extrair uma amostra de sangue, o médico e os enfermeiros que entraram no quarto fizeram-no com “fato de primeiro nível”, que inclui uma bata impermeável, dois pares de luvas, uma touca e uma máscara cirúrgica. Mas às 11h já o médico avisara os seus superiores para “o estado de deterioração da paciente” e defendera “a necessidade de uma actuação imediata”.

Entre as ordens do médico para que os envolvidos no tratamento a Romero mudassem para equipamentos de maior segurança, o próprio continua sem o fazer, descreve, por estar sozinho a coordenar o caso. “Durante este tempo, a paciente começa a piorar, com tendência para a hipotensão, náuseas e mal-estar, obrigando a medidas de apoio”, descreve, num texto a que os jornais espanhóis tiveram acesso.

Saber pelos jornais
Ainda que seja o máximo responsável pelo caso, não é o primeiro a saber que a análise inicial deu positivo para o vírus. “Apesar de a primeira amostra ser positiva, eu não tenho conhecimento directo disso, a não ser pelos jornais”, denuncia.

Considerando “o alto risco de complicações”, às 18h, Parra pede que a enfermeira seja transferida para o Hospital Carlos III, que é o centro de referência em Madrid para estes casos e foi onde Romero contraiu o vírus. Uma segunda análise, uma hora depois, confirma que a paciente está infectada com ébola e o médico volta a saber disso “primeiro pelos media e não pela autoridade competente” (o El Mundo escreve que soube uma hora antes de Parra). Só cinco horas mais tarde, depois da meia-noite, chega a ambulância que levaria Romero para o Carlos III. 

Durante a tarde de quarta-feira, Parra pediu para ser internado no mesmo hospital. Esta quinta-feira, há seis pessoas em isolamento no Hospital Carlos III.

Resposta desleixada
Numa altura em que o vírus já matou pelo menos 3879 pessoas e infectou mais de 8000 – e quando, para além do primeiro contágio fora de África, acaba de morrer em Dallas o liberiano que tinha viajado infectado para os Estados Unidos, Eric Duncan, de 42 anos, contagiado na Libéria –, o presidente do Banco Mundial, Jim Kim, diz que o mundo “falhou miseravelmente” na resposta à epidemia e que a comunidade global ainda “não se está a mexer suficientemente depressa”.

“Deveríamos ter feito tantas coisas. Deveríamos ter erguido sistemas de assistência médica. Deveríamos ter começado a monitorizar quando os primeiros casos foram relatados. Devia ter havido uma resposta organizada”, diz Kim, ouvido pelo diário The Guardian antes da reunião anual da organização que dirige, este fim-de-semana, em Washington.

Kim diz que quer mais 20 mil milhões de dólares (15.600 milhões de euros) dos governos ocidentais para um novo fundo de saúde global que possa reagir instantaneamente às emergências. O plano, explica, envolve criar grandes centros de tratamento nos EUA e no Reino Unido e melhorar os serviços nas comunidades locais. “Seria bom tratar as pessoas perto de casa. Mas isso não é possível sem pessoal. Temos de criar as capacidades para que estes casos sejam identificados mais depressa.”

A ONG global Oxfam, com sede no Reino Unido, tem criticado o Banco Mundial por não investir mais em cuidados médicos e por promover as privatizações destes serviços. “Isto mudou em termos de retórica com Jim Kim. Esperamos que o resultado seja o banco emprestar mais dinheiro e fornecer mais aconselhamento. O ébola deve acelerar esta mudança”, diz Nicolas Mombrial, chefe da Oxfam em Washington, citado pelo jornal britânico.

Kim afirma que muitos países, como o Ruanda, com 55 mil funcionários na área da saúde, usaram bem os fundos disponíveis; outros nem tanto. Mas não poupa nas críticas às instituições e governos ocidentais. “Isto foi uma resposta desleixada, mesmo para um vírus lento como o ébola. Se aconteceu assim significa que não estamos nem de perto nem de longe preparados para um vírus que se mova mais depressa.” Quanto à crise actual, Kim vai pedir mais dinheiro, mas diz que já passou demasiado tempo. “É tarde. É realmente tarde.”

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