O trovador que não queria sê-lo

Vindo de sítio nenhum, surge um daqueles raros casos de talento à guitarra, um Martin Stephenson sem o álcool, um Billy Bragg sem a política. Anotem o nome: Steven James Adams.

Foto

Talvez estejamos a esquecer-nos de alguém, mas assim de repente podíamos jurar que, com as excepções de Andy White e Billy Bragg, o Reino Unido não tem produzido muitos trovadores de qualidade desde os idos de Nick Drake e Richard Thompson.

Seria pois com a maior alegria que agora vos anunciaríamos que a estreia a solo de Steven James Adams vem resolver essa lacuna. E dizemos “seria” porque aparentemente trovador é o que ele não é. “Trovador é uma palavra engraçada”, diz-nos o, err, hum, o compositor de canções com vagas reminiscências folk, por entre outras que o tornam vagamente inclassificável. “Quando penso em trovador penso no Tim Buckley, embora não saiba porquê. Gosto de escrever canções e de cantá-las, não sou um grande guitarrista e sou feliz com isso."

Valha a honestidade, só usámos aquela palavra para o classificar porque em House Music, a sua estreia a solo, quase todas as canções partem da guitarra – acústica na maior parte dos casos, em strumming ou dedilhada, pese embora ele dê uma perninha na eléctrica e a moleza dos dedilhados não lhe assente bem, visto a sua voz não possuir ainda suficiente fundura.

Em verdade vos dizemos que antes de mais Adams é um exímio escritor de canções, com um sagaz ouvido para a melodia e uma rara capacidade de encontrar o arranjo adequado. Partindo de uma vaga base folk – quase sempre com baixo e bateria por perto –, consegue içar uma canção da banalidade com um refrão em ascensão, um acordeão e uma lap steel nesse belíssimo tema que é A singer in a band. Na abertura, Drinking from the river, são os sopros e os metais a encher uma melodia que brilha no refrão. O seu balanço entre acordes menores e maiores é perfeito em How we get through e particularmente pungente em I can change, uma daquelas canções cheias de guitarras sujas em que Steve Earle é mestre.

Repetidas audições de House Music deixam-nos com bicho-carpinteiro nas sinapses: como é que um estreante pode apresentar-se assim, tão seguro do seu mister?, perguntamo-nos.

A resposta é que Adams não é um estreante. Quando estava em Cambridge, a estudar Sociologia na universidade (“mas não na Cambridge boa”), acabou por “chamar a atenção do John Peel e isso levou ao nascimento da Broken Family Band em 2001”. A banda encerrou actividade em 2009 e “no ano seguinte” Adams fundou outra chamada Singing Adams, que lançou dois discos antes de ele se atrever à nascente carreira a solo.

Por esses dias, já muita corda havia partido. “Quando tinha 14 anos”, os pais compraram-lhe uma guitarra. “Cantava num coro, e sentava-me ao piano sempre que dava com um”, diz-nos, admitindo porém que nessa terra idade nunca tenha sentido nenhuma “qualidade musical assinalável”, o que agora à distância, afere, “por vezes dificulta a tarefa, por vezes até ajuda”.

A infância de Adams foi passada entre Inglaterra e o País de Gales, “sempre a mudar de casa”. Porquê? “Porque os meus pais fizeram um monte de disparates”, supõe, sem se alargar muito sobre o assunto. “Crescer em zonas rurais de Gales foi impecável, já as estadias em Inglaterra nem por isso." Não é fã do Swansea, mas adora a cidade – mais uma razão para o apreciarmos.

Nessa época pré-Internet e pré-downloads, a sua relação com a música era “mediada pelos jornais musicais e pela rádio”, mas Adams admite que “era fácil arranjar discos”. “Pop”, na altura, “não era um género – era o que passava na TV e na rádio”, o que “tanto podia significar os Duran Duran e os Wham como os Psychedelic Furs, os Jesus and Mary Chain, os Aztec Camera ou mesmo o Billy Bragg."

Só no final dos 20 é que Adams aprendeu “a coleccionar, consumir e apreciar música”, confessa. “Era preguiçoso e não comprava muita coisa”. Admite a sua quota de meu gosto ao crescer: foi dos Bon Jovi e dos Def Leppard para coisas melhores como Metallica, Slayer, Anthrax, só depois mergulhou no punk (particularmente em bandas como os Black Flag e os Dead Kennedys) e daí seguiu para os Jesus and Mary Chain e os Spacemen 3. Naturalmente, este caminho levou-o ao indie rock dos 90s (Pavement, Sebadoh, Pixies) e, por fim, como qualquer melómano que se preze, à folk e à country. Ainda assim, “as bandas e a escrita americanas têm maior influência” nele “do que as britânicas”.

Tão simples quanto possível
Talvez seja exactamente por isso que House Music “saltita entre algumas coisas: a folk, o indie rock, talvez a [sua] própria ideia do que a pop é”. Considera-se um estranho produto das mais variadas influências, que “podem até não ser óbvias” a quem o ouve, como Marvin Gaye, Van Morrison, os Smiths, algum jazz, velhos discos de blues. “De alguma forma tudo isto acaba por estar na minha música. Não estou a tentar quebrar barreiras – deixo isso para os miúdos –, só a escrever canções."

Ora, escrever canções implica refrões, tarefa em que Adams é exímio, talvez por até hoje nunca ter conseguido “separar a importância de uma boa letra da de uma boa melodia”. A sua forma de compor levo-a a produzir “um arremedo de melodia e algumas palavras ao mesmo tempo”, que depois crescem até se tornarem uma canção. “Hoje em dia isto sai-me naturalmente, mas tive de escrever muitas canções más até chegar aqui. E provavelmente ainda vou escrever muitas mais."

“Chegar aqui” significa começar uma carreira a solo, tomar decisões sozinho e sentir que “definitivamente” já “sabia o que queria", do que gosta, o que funciona para si. Ainda que só tenha dado o passo depois de “um senhor simpático da editora" lhe ter pedido um disco a solo: "De repente percebi que tinha chegado o momento."

Saber o que quer e do que gosta implica decisões muito simples: “Adoro a simplicidade. Gosto de arranjos meticulosos, apurados, e gosto de manter a minha vida tão simples quanto possível, de modo a não me distrair com todo o ruído do mundo. Escrevo a canções e visto-as da forma mais simples."

Ao contrário da maior parte dos cantautores, Steven diz não ser “um daqueles tipos atormentados por dúvidas”. (Pelo menos acessível e fácil de conversa é.) "Escrevo sobre a minha experiência de ser pessoa e de interagir com outras pessoas." O amor, claro, “é um dos grandes assuntos”, ou, mais propriamente, “o impacto colateral do amor”.

Fazemos-lhe uma última pergunta: sendo House Music um disco que deixa tanto em aberto, o que vai ele fazer a seguir? “Ha! Estou a pensar atirar-me a um disco country”, responde. Cuidado, amigo, ainda acabam a chamar-te trovador. Mas dos bons. <_o3a_p>

Sugerir correcção
Comentar