“Não acredito que se queira acabar com a Ópera de Roma"

Ópera de Roma despede coro e orquestra. Decisão da câmara e do teatro é inédita em Itália. A opinião do musicólogo Rui Vieira Nery e do consultor artístico do São Carlos Paolo Pinamonti.

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Interior da Ópera de Roma
Riccardo Muti durante um concerto no Vaticano, em 2012
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Riccardo Muti durante um concerto no Vaticano, em 2012 Max Rossi/Reuters

Depois das greves sucessivas e do clima de grande instabilidade que levou à saída do director musical, o maestro Riccardo Muti, a Ópera de Roma despede agora 182 pessoas das 460 que compõem os seus quadros - todo o coro e toda a orquestra. Um autêntico terramoto que, garante o site do jornal Corriere della Sera, não tem precedentes em Itália.

O anúncio foi feito agora pelo presidente da câmara de Roma, um dos destinatários da carta de demissão de Muti, tornada pública no dia 22 de Setembro. Nela o maestro, que acumulava o cargo em Roma com a direcção da sinfónica de Chicago, dizia sair por não ter serenidade para trabalhar e por serem demasiados os problemas. Muti fazia assim referência ao braço de ferro que mantinha há longos meses com os sindicatos que representavam músicos e cantores.

Ainda que apenas uma parcela da orquestra entrasse em greve, era impossível continuar a trabalhar nas produções já agendadas, explicou. Na mesma carta Muti também renunciava, por isso, ao seu lugar na direcção de Aida, cuja estreia estava prevista para 27 de Novembro, e de As Bodas de Fígaro, anunciada para a próxima temporada. “Infelizmente, apesar de todos os meus esforços, não existem condições que garantam a serenidade de que preciso para que as produções resultem”, escreveu o maestro de 73 anos, acrescentando que tomava a decisão de se afastar com “grande tristeza”.

O presidente da autarquia, Ignazio Marino, garantiu hoje aos jornalistas que o despedimento colectivo não afectará os restantes 278 trabalhadores, sendo as produções asseguradas, a partir de agora, pela contratação de freelancers. “Esta foi uma decisão muito dura”, disse o director geral do teatro, Carlo Fuortes, aqui citado pela Ansa, a agência de notícias italiana. “A outra única alternativa seria fechar o teatro por completo.”

O site oficial da Ópera de Roma continua com a programação 2014/15 que tinha anunciado antes deste “terramoto”, sem qualquer indicação sobre os despedimentos ou o substituto de Muti, quer na direcção musical do teatro, quer em Aida e As Bodas de Fígaro.

O insucesso das negociações – a câmara e o teatro não conseguiram chegar a um entendimento com os sindicatos – e as greves constantes levaram a que a Ópera de Roma tivesse perdido 12,9 milhões de euros no ano passado e 300 mil durante este Verão, segundo a Ansa.

A saída de Muti, um dos maestros mais reconhecidos do mundo, teve grande eco internacional, lembra também o diário espanhol ABC, levando o teatro a perder muitas receitas em mecenato e publicidade.

“Esta é uma medida nova em Itália, mas muito comum no resto da Europa”, acrescentou Fuortes, citando exemplos em Espanha, Holanda e Áustria, em que os músicos, ao invés de auferirem um salário fixo, são contratados por produção, algo que no caso italiano permitirá ao teatro poupar 3,4 milhões de euros.

Para contornar os sindicatos, o presidente da câmara, por seu lado, desafiou os membros da orquestra e do coro a formarem uma cooperativa nos próximos 75 dias: “Se se organizarem da melhor maneira, a Ópera poderá ter um novo coro e uma nova orquestra a partir de 1 de Janeiro.”

“É um despedimento injustificado e discriminatório, um projecto de desmantelamento do teatro de ópera”, disse ao italiano Corriere della Sera Marco Piazzai, primeiro trombone da orquestra e representante do sindicato Fials-Cisal, defendendo que foi por se ter apercebido das intenções da direcção geral do teatro e da câmara que Riccardo Muti tomou a decisão de se demitir. “Estamos prontos a impugnar esta decisão”, concluiu.

Dario Franceschini, ministro da Cultura italiano, reconhece que este depedimento colectivo é uma opção “dolorosa, mas necessária para salvar a Ópera de Roma”.

Novo modelo de gestão

O italiano Paolo Pinamonti, director do Teatro da Zarzuela, em Madrid, e consultor para a programação do Teatro Nacional São Carlos, garante que, apesar do que vem hoje na imprensa, o objectivo do presidente da câmara de Roma e da direcção da ópera não é contratar músicos diferentes a cada nova produção, mas implementar um novo modelo de gestão que pode passar por fazer um contrato com uma grande orquestra e um coro que prestariam serviços ao teatro, à semelhança do que acontece em Madrid, Toulouse ou Estrasburgo.

“Não acredito que se queira acabar com a Ópera de Roma. Nunca se poderia trabalhar com músicos contratados por produção, começando pelo facto de os maestros que poderiam vir a ser convidados dificilmente aceitarem sem saber que corpo artístico teriam para dirigir”, explica este professor de história da música que já esteve à frente do Teatro La Fenice de Veneza (1997-2000) e do São Carlos (2001-2007). O modelo que deverá ser aplicado a esta casa da ópera, defende, é semelhante ao da sua Zarzuela.

O teatro madrileno que dirige tem um contrato com a Orquestra da Comunidade de Madrid que, nesta temporada, prevê que esta formação artística preste 180 serviços (ensaios e récitas) à Zarzuela. O mesmo tipo de modelo tem o Teatro Real da cidade com a sua orquestra sinfónica.

“Assim os teatros podem trabalhar com uma orquestra e um coro de grande qualidade, com uma formação estável, sem encargos fixos tão grande. Por outro lado, estes corpos artísticos mantêm grande autonomia de gestão e podem desenvolver programas paralelos, exclusivos”, argumenta Pinamonti. Para o director da Zarzuela, é natural que Roma venha a criar uma outra orquestra sinfónica e um novo coro, que poderá vir a servir a sua ópera nos mesmos termos de Madrid, algo que fica já enunciado quando o presidente da câmara fala numa possível cooperativa de músicos.

Este modelo, que “responsabiliza as orquestras”, poderia ser aplicado ao São Carlos? “As circunstâncias de Roma, cidade com quatro milhões de habitantes e muitos palcos de ópera, e de Lisboa, cujo teatro lírico é o único do país, são muito diferentes”, diz apenas.

Ao contrário de Pinamonti, Rui Vieira Nery, musicólogo e programador, não tem conhecimento directo do caso de Roma, mas isso não o impede de dizer que o simples princípio da existência de teatros de ópera sem formações corais e sinfónicas permanentes lhe parece errado. “Para que um teatro possa desenvolver o seu trabalho com qualidade e a sua personalidade precisa de equipas técnicas e artísticas permanentes”, disse esta tarde ao PÚBLICO. “Uma temporada a recibos verdes, com colaboradores desgarrados, é o contrário do que exigem as produções operáticas contemporâneas.”

Nem o argumento da poupança de 3,4 milhões de euros, evocado pela direcção do teatro e pelo autarca, justificam, na opinião de Nery, a decisão agora anunciada. “Este modelo de contratar músicos por produção é antieconómico. Se o teatro quiser manter um ritmo de produção intenso, as contratações avulsas tornam-se muito mais caras, além de que é um risco depender do mercado – e se não houver músicos de qualidade disponíveis?”

Um risco acrescido, sublinha Nery, quando o teatro em causa faz parte da “primeiríssima divisão da ópera”, como a Metropolitan Opera de Nova Iorque, a Ópera de Viena ou o Scala de Milão. Se vingar, esta “visão neoliberal ignorante” privará, na opinião de Nery, uma grande sala de dois corpos artísticos com uma cultura própria.  


Notícia corrigida às 16h00: Estava escrito que o Teatro da Zarzuela tinha um contrato também com um coro externo, no entanto esse contrato existe apenas com a Orquestra da Comunidade de Madrid. A Zarzuela tem uma formação coral própria. 

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