No Barreiro começa esta quinta-feira um festival com espírito de descoberta

No Out.Fest existe espaço para interrogar as fronteiras do jazz, com Peter Evans, do rock, com os Faust, ou da pop, com Dean Blunt. É no Barreiro. Começa esta quinta-feira. Não há muitos festivais assim.

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Diz-se que quem vive na cidade do Barreiro passa parte do ano a olhar para o outro lado do rio Tejo para Lisboa. Mas existem períodos em que as posições se invertem. Como acontece agora, altura em que tem início o Out.Fest, Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro, que se prolonga até domingo.

Não é um festival de massas. Mas é um acontecimento que ao longo de 11 edições foi ganhando o seu espaço, tendo hoje uma identidade reconhecível, assente nas músicas exploratórias, e uma credibilidade, nacional e internacional, sedimentada. A organização pertence à associação cultural Out.Ra e a programação é feita em colaboração com a produtora Filho Único.

Ao longo dos anos por lá passaram nomes como Panda Bear, Sonic Boom, The Fall, RED Trio ou Oneohtrix Point Never. Este ano o cartaz é um dos mais consistentes de sempre, misto de valores emergentes, projectos consolidados como Fennesz ou Peter Evans e gente veterana que continua bastante actual como os Faust.

Comum a todos é a inquietação, a vontade de desbravarem novos territórios, de se porem em causa, independentemente de a sua abordagem estar próxima do jazz, rock ou folk, pondo-nos a nós, espectadores, também em causa. Essa é a raiz do próprio festival, diz-nos um dos seus responsáveis, Rui Pedro Dâmaso.  

“Mais do que estarmos preocupados em programar tendo em mente um determinado género musical, interessa-nos a atitude criativa que lhe é subjacente. Ou seja, interessa-nos é ter artistas com processos aventureiros, para lá dos géneros musicais.”

A edição deste ano apresenta linhas de continuidade em conexão com o passado recente, não só em termos musicais, como também em relação ao facto do evento se desmultiplicar por vários lugares. “Estamos a trabalhar para diversificar ainda mais os espaços, para ir à procura das pessoas. Queremos revelar aspectos desconhecidos da cidade, a quem cá vive e a quem vem de fora. Esse espírito de descoberta é central em todos os aspectos.”

Ao longo dos anos decorreram concertos em mais de 20 espaços. Alguns preparados para receber música, outros adaptados para esse efeito. Cidade com grande tradição de associativismo, as colectividades são alguns desses lugares que têm sido resgatados para as actividades do festival. Mas não só.

O Convento da Madre de Deus da Verderena, a Casa da Cultura da Baía do Tejo ou o pavilhão dos Ferroviários são outros dos locais que, este ano, irão receber concertos. “Identificar espaços na que nos possam servir é um trabalho constante”, reflecte Rui Pedro Dâmaso, dizendo que essa dinâmica acaba por contribuir para que a cidade seja conhecida. “Neste momento sentimos que o festival capta tantas pessoas de fora como daqui. O ano passado deu para perceber que a presença de forasteiros na cidade cresceu. Era comum, por exemplo, ver reformados a servirem de ponto de ligação, dando indicações a essas pessoas que vinham de fora.”

O Barreiro respira música. Para além do Out.Fest, existe também o festival Barreiro Rocks, uma escola de jazz ou estúdios de gravação. Mas daí até dizer-se que a cidade tem consciência dessa dinâmica, ou mesmo orgulho, vai ainda alguma distância. Uma coisa é certa: o festival tem tentado deixar a sua marca e o seu rasto, na comunidade, para além dos dias em que acontece.

Uma das vias tem sido a realização de workshops onde muitos dos participantes são locais. “No ano passado tivemos o músico americano Joe Morris a dar um workshop na Escola de Jazz, com muitas pessoas interessadas, e foi realizado um trabalho com miúdos dos 7 aos 9 anos, através do músico Filipe Felizardo, que concebeu um curso de escuta criativa.” Na edição deste ano haverá um workshop com a cantora norte-americana Carla Bozulich e no final do mesmo haverá um concerto, sábado, no teatro municipal.

“Será uma coisa muito especial, quase existencial. Já temos as inscrições preenchidas e mais de metade das pessoas são daqui, o que nos deixa satisfeitos. Não é apenas importante para criarmos público. É também importante como gerador de criadores.”

Alguma da mais desafiante música feita por portugueses nos últimos anos deve também qualquer coisa ao Out.Fest. As primeiras edições, a esse nível, foram importantes, contribuindo para revelar novos nomes e redes relacionais. “Um dos concertos mais memoráveis aconteceu na 2.ª edição, com os portugueses Fish & Sheep e os Tropa Macaca”, recorda Rui Pedro Dâmaso. “Foi um libertador e eu e as pessoas que lá estavam, sentimo-lo com intensidade. Não sabíamos sequer se o festival iria prosseguir e foram momentos como aquele que nos deram alento.”

Momentos iniciáticos como esse acontecerão certamente também este ano, com muitos daqueles que se irão abandonar às propostas em cartaz. Esta quinta-feira, às 21h30, no Be Jazz Café, oportunidade para ouvir a guitarra do português Norberto Lobo e uma sessão de emancipação jazzística pelo baterista inglês Steve Noble e pelo histórico saxofonista alemão Peter Brötzmann, figura cimeira do jazz mais livre desde o final dos anos 1960.

Na sexta, outro nome grande do jazz, o trompetista americano Peter Evans e o seu quinteto, estará em destaque. Durante a tarde haverá uma masterclass e pela noite uma sessão partilhada, na Casa da Cultura, com o inglês Dean Blunt e o austríaco Fennesz.

O primeiro virá apresentar o novo álbum mesmo agora editado, Black Metal, mais um conjunto de misteriosas canções amarguradas com um travo desviante. Uma espécie de pop orquestral subversiva, sempre à procura de novos caminhos de expressão. Afinal o mesmo desígnio de Fennesz, com trabalho textural para computador e guitarra, sublimado em Endless Summer (2001) e desenvolvido deste então como no álbum deste ano, Bécs, ou nas colaborações com Sakamoto e Sylvian.

No sábado, durante a tarde, no Be Jazz Café, duas formações portuguesas com conexões ao jazz, os Open Mind Ensemble e o Rodrigo Amado Wire Quartet, enquanto à noite, nos Ferroviários, se farão ouvir as margens do rock, com os portugueses Putas Bêbadas, os holandeses The Ex, os americanos Magik Markers e principalmente os míticos Faust, grupo alemão que se revelou decisivo, desde a década de 1970, na exploração de texturas ambientais e industriais. Da formação que se apresentará no Barreiro fazem parte o duo nuclear e membros originais do grupo, Jean-Herve Peron e Werner ‘Zappi’ Diermaier.

No domingo, no convento da Verderena, haverá um encontro especial com a música electrónica imprevisível, e até agora largamente desconhecida, do veterano americano Charles Cohen e com as superfícies tecno analógicas de Rabih Beaini, produtor e DJ nascido no Líbano e homem forte da editora Morphine.

“Tudo gente com impacto na música actual”, conclui Rui Pedro Dâmaso. “Não queremos trazer lendas só por serem lendas.” É isso. No Barreiro, de quinta a domingo, está uma série de músicos relevantes para perceber as dinâmicas da música actual, independentemente da filiação estilística ou da idade.

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