Os Maias e Portugal

Carta a João Botelho.

Meu Caro João,

Irra, que até me fizeste ficar comovido! E isso dá-me direito a tratar-te por tu. Eu ali sentado, no escuro da sala, acaba a publicidade e, às primeiras imagens do genérico, pimba, é a madeleine, a de Combray, a autêntica. O inesperado choque traz-me lágrimas aos olhos. Com a comoção, nem me lembro bem das imagens: esquissos, projectos, debuxos, tecidos, não sei bem, mas sei que foram suficientes para logo à primeira impressão me sentir nos Maias. Nos meus Maias, no meu Ramalhete

É que eu sou muito lá de casa, menino. Amigo desde a mais tenra adolescência do fiável Taveira, do sensível Cruges, do saudoso Marquês, do sólido Craft.  

Recompus-me, e à medida que o filme se ia desenrolando, era mesmo Os Maias, o autêntico, o genuíno. Lá estavam a fachada, a fonte do jardim, o whist do Ramalhete, os veludos verdes dos reposteiros do consultório, o sólido Afonso, o besuntoso Dâmaso, as soirées do S. Carlos, a denguice da Gouvarinho e os envolventes Cohens, da Vila Balzac, da bancarrota e das petits pois, e aquela aparição de uma Deusa, talvez um pouco parca de Olimpo, de brasileiro e cadelinha, o Mocho da Toca e o John, o mefistofélico Ega, o John, lá estava ali à minha frente. O Alencar de Alenquer, histriónico, talvez com menos ossos para estreitar.

Quadro a quadro, entre os estupendos telões do exterior e o fiel requinte dos fantásticos interiores e do magnífico guarda-roupa, desenrolava-se ali à minha frente o texto, o discurso, as frases, dos Maias. Frases gravadas na minha memória que reconheci uma a uma, como parte do meu passado, frases íntimas como amigos de infância a desfilar à minha frente, a salientar, com singular mestria, a estatura única desta obra-prima da literatura, que consegue conjugar uma devastadora tragédia com a mais divertida observação da comédia humana. O solene, o prosaico, o sublime, a vida. Conseguiste, em forma cinematográfica, ressaltar, com originalidade e integral respeito pelo original, o sublime do texto deste romance magnífico. É obra! Venham de lá esses ossos.

O filme é, como te ouvi e li dizer em entrevistas, a tua leitura d'Os Maias. A autoria desta obra de arte é tua. Mas encontrei no teu filme, em considerável extensão, também a minha leitura.

Já, porém, não subscrevo a ideia difundida em entrevistas e comentários a propósito do lançamento do filme de que Os Maias serão uma espécie de alegoria da História de Portugal e que a sua actualidade se deve a que o Portugal de hoje é igual ao que o Eça disseca.

Discordo por duas razões. Primeiro porque dizê-lo diminui, a meu ver, Os Maias. É verdade que Portugal é um “personagem” importante em muita da nossa melhor literatura, designadamente no Eça (a hiperidentidade de que fala Eduardo Lourenço?) e que Os Maias se inscrevem na sociedade portuguesa da época, mas não são sobre Portugal. São uma das mais autênticas, impiedosas e sagazes análises da natureza humana. Ali está tudo, a frescura da esperança, a coragem, a pusilanimidade, a traição, o desejo, a paixão, até à violação brutal do mais redutor dos tabus que leva ao extremo do humano. Ali, e no filme, descrito de modo magistral.

Não foi Portugal que não mudou. Foi a natureza humana. E é por ser sobre a condição humana que a obra de Eça é tão actual e atingiu reconhecimento universal.

E discordo também porque creio que o Portugal de hoje, tendo em conta os padrões das duas épocas, é muito diferente e muito melhor do que o de então. É mania dizer que nada mudou. Há uns meses alguém citava para esse efeito um texto onde Eça dizia, sobre as jovens portuguesas, que eram raquíticas, macilentas, olheirentas. Transportado para o presente concordarás que parece tratar-se de um problema oftálmico. Não são hoje obscuros M. Guimaraens que têm imaginária influência em Gambettas. São figuras portuguesas que ocupam lugares internacionais do maior destaque, o que era impossível com a imagem do país de então. Hoje, Carlos não teria necessidade de recorrer a arquitectos ingleses para restaurar o Ramalhete e deixar para o português amigo do Vilaça as cocheiras. Temos uma das melhores redes viárias do mundo, somos vanguardistas em áreas como as energias renováveis, temos cientistas de reputação mundial patrocinadores de avanços mundialmente reconhecidos, etc. Para nos atermos à Arte e à Cultura, quando tivemos, como hoje, poetas, escritores, arquitectos, artistas plásticos, cineastas que são referências pelo mundo todo? A alteração da programação cultural por todo o país nas últimas duas décadas, o modo como pessoas dos mais diversos meios se exprimem, tudo revela uma enorme mudança. Isto significa que há hoje uma muito maior proporção de portugueses capazes de usufruir dos Maias: do livro e do filme. Até a bancarrota deixou de ser nacional e passou a sistémica, graças à benfeitora globalização. Não foi Portugal que não mudou. O que não mudou foi a natureza humana, que me cheira não vai mudar e por isso revemos, nos nossos contemporâneos, os comportamentos e fraquezas, as qualidades e defeitos, das personagens de então. É a natureza humana que Eça retrata e é isso que reencontramos na sua obra e a faz tão actual.

Tenho de ir agora, João. Vou para Viseu, rever Os Maias. E antes de voltar para Lisboa tenho que passar em Mangualde, não me vão esquecer os famosos pastéis.

Deixo-te, pois, com enorme, grato e reconhecido abraço. Encheste-me a alma com os teus Maias.

Embaixador reformado

Sugerir correcção
Comentar