Fotografia - essa capacidade extraordinária de emaranhar a História

Nas últimas décadas, a prática documental fotográfica não tem tido sossego. Desconfiam dela. Depreciam-na. A história precisa da fotografia. Mas a fotografia gosta de brincar com a história. Isso é mau? Condor, de João Pina, mostra que não

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Crânio com várias marcas de balas, a ser estudado pela Equipa Argentina de Antropologia Forense, num loboratório de Buenos Aires João Pina

É possível considerar a fotografia um documento histórico fiável?

A resposta a esta pergunta pode não valer um milhão de dólares, mas é capaz de provocar tantas linhas de argumentação quantas cabeças se dedicarem a pensar nela. Desde logo porque as próprias noções de fiabilidade e de documento são potenciadoras de linhas de reflexão tão irremediavelmente voláteis que se torna utópico querer isolar qualquer tendência. As ligações escorregadias entre os actos de fotografar, de documentar, de testemunhar e de arquivar têm sido, desde os anos 70, um campo fértil de discussão teórica acerca da natureza das imagens, da maneira como ganham vida própria, como supostamente mascaram a noção de verdade ou, mais radicalmente, como dificultam a transmissão de experiências vividas (Susan Sontag e Martha Rosler).

Aproveitando uma suposta crise do realismo fotográfico da era digital (na qual a manipulação - que sempre existiu - se torna agora mais apetecível e fácil), há quem veja a fotografia num beco sem saída, presa na armadilha da desmaterialização e de uma prática cada vez mais espectral. Por arrasto, é o seu estatuto de documento que fica em causa, havendo também quem questione se não vivemos já numa era pós-fotográfica.

A aceitação acrítica destas mudanças é perigosa porque comporta consequências decisivas sobre a própria noção de história (Jorge Ribalta) e pode alterar a forma como nos relacionamos com o passado. Certo é que, discussões teóricas à parte, a fotografia e o filme foram os maiores (e mais férteis) campos documentais do último século e meio. Renunciar ao realismo fotográfico e desconsiderar o valor da fotografia enquanto documento material (e indexante) não só não parece uma opção viável (Jacques le Goff : “Sem documento não há história”), como descarta ínfimas possibilidades de chegar ao passado de forma criativa, emotiva, poética…

O foto livro Condor, de João Pina, é um bom exemplo de como se podem criar hoje documentos fotográficos de enorme valor histórico ao mesmo tempo que se criam objectos visuais com elevado poder sugestivo. É um exemplo de como se pode tornar a história visível, simultaneamente de forma literal e metafórica, procurando uma cultura fotográfica comprometida, utilizando todas as ferramentas da investigação ao dispor e escolhendo formas de contar alternativas, assumidamente como um acto político.

Na tradição fotográfica, essa forma emaranhada de contar a história encontra precedentes valiosos em obras como Nagasaki 11.02 (1966), de Shomei Tomatsu (1930-2012), onde o mestre japonês evita captar directamente as feridas e as cicatrizes das vítimas provocadas pelos ataques nucleares. Ao longo do livro, vão desfilando fotografias de objectos isolados, vindos do arquivo de um pequeno museu de memória. Ainda no Japão, The Map (1965), de Kikuji Kawada, utiliza recursos estilísticos da abstracção e da geometria para mostrar as marcas nucleares no edifício público identificado como o ground zero da bomba largada sobre Hiroshima.

Utilizando recursos visuais de todo o tipo, em Kurdistan: In the Shadow of History (1997) e em Encounters with the Dani (2003) a fotógrafa americana Susan Meiselas (1948-) é talvez aquela que, nos últimos anos, melhor tem explorado o potencial dos documentos efémeros, das impressões vernaculares, das imagens antigas e dos testemunhos orais, numa justaposição capaz de criar poderosas narrativas históricas. São “fotografias que não estão na arte. Mas estão na história” (Edmundo Desnoes).

João Pina compreendeu o potencial da expressão visual da história e foi capaz de dar corpo a um livro com grande riqueza imagética, onde a fotografia tanto assume uma utilidade forense como se mostra capaz de transmitir a angústia, o terror, o medo e a ausência através da linguagem clássica do retrato.

Condor afirma, por outro lado, a afectividade como uma modalidade válida na narrativa historiográfica. É um livro de construção hábil, recheado de diferentes caminhos e ritmos que nos mostra como a fotografia ainda pode ser um recurso poderoso para nos ligar ao passado e para nos contar a história, por mais terrível, desconhecida, inalcançável ou escorregadia que ela possa parecer. Condor está mais do lado do documento, dentro da história, apesar das dúvidas e das coisas que ficaram por fazer. Até porque “[fotografar] é por vezes o mínimo que se pode fazer” (Meiselas).

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