Um cataclismo político à vista numa cidade em estado de sítio

Depois de 50 anos de poder no Maranhão, o bloco político liderado por José Sarney está, de acordo com as sondagens, em vias de ser derrotado por um candidato do PC do B, ex-maoísta. A campanha que se desenrola em São Luís, uma cidade assustada pelos ataques e incêndios de autocarros ordenados desde o interior da cadeia de Pedrinha, serve de prenúncio para o fim de ciclo de um dos mais poderosos clãs políticos do Brasil contemporâneo.

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Nas últimas eleições, o PT de Lula apoiou Roseana Sarney... JAMIL BITTAR / REUTERS
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... e assim garantiu o apoio do PMDB e de Sarney a Dilma UESLEI MARCELINO / REUTERS

Passam poucos minutos das 17h30 em São Luís do Maranhão e os dois empregados de uma pequena cafetaria especializada em produtos à base de mandioca acusam estranhos sinais de nervosismo. Se não fecharem depressa as portas do estabelecimento correm o risco de perder os últimos autocarros do dia. E ficarão sem saber como regressar a casa. Depois da onda de violência que varreu a cidade no último fim-de-semana, os transportes públicos deixam de operar a partir das seis da tarde.

 Cumprindo ordens vindas do interior da cadeia de Pedrinhas, gangues organizados dedicaram-se a incendiar autocarros. Por estes dias, ao contrário do que aconteceu em Janeiro, quando uma menina de seis anos morreu carbonizada num desses ataques, não houve vítimas. Mas uma vez mais, São Luís, uma cidade com 958 mil habitantes no nordeste do Brasil, ficou em estado de sítio. Nos hotéis os funcionários recomendavam aos hóspedes que não saíssem dos seus quartos, as escolas e os serviços públicos fecharam mais cedo, as áreas comerciais da zona histórica ficaram desertas.

Para a campanha do candidato do PC do B, um partido de origem maoísta cujo candidato, Flávio Dino, lidera as sondagens para a conquista do governo do Estado, o caos e o medo que se instalaram na cidade são mais uma prova da agonia de um sistema de poder que dura há meio século – com uma excepção de dois anos entre 2007 e 2009. No vértice desse poder está José Sarney, senador, ex-deputado federal, ex-governador do Estado e ex-presidente da República. Em 2013 registaram-se 62 mortes em conflitos entre os presos de Pedrinhas, alguns por decapitação, e quando a violência transbordou para o exterior, o Governo do Estado liderado pela filha de José Sarney, Roseana, pediu ao governo federal o envio de forças de segurança. Esta semana voltou a repetir o pedido. Em São Luís, até Agosto, tinham-se registado 528 assassinatos.

No meio do clima de medo e de violência, a campanha eleitoral faz-se pela mesma medida: num clima de intimidação e violência verbal. Roseana Sarney não se recandidata, mas o bloco de poder agregado em torno da família fez avançar Edson Lobão, filho do ministro das Minas e Energia, dono de uma cadeia de meios de comunicação social que, como Roseana, faz parte da lista dos acusados por Paulo Roberto Farias de terem recebido luvas no escândalo que envolve a empresa pública Petrobras. Edson Lobão Filho, porém, não está a conseguir resistir à dinâmica eleitoral do seu oponente e não vai além dos 27% das intenções de voto contra 48% do candidato do PC do B. “Conseguimos ganhar a sociedade com uma tese: 50 anos de poder já basta”, explica Flávio Dino, um ex-magistrado e professor universitário de Direito.

Se Dino ganhar as eleições e afastar do poder o bloco de José Sarney, a repercussão do resultado vai ter um impacte nacional. Sarney “é o maior PIB político do Brasil”, na opinião de Márcio Jardim, candidato a deputado federal pelo PT e, embora não tenha uma intervenção directa na campanha, ele próprio diz “não ter dúvidas” que ainda é uma figura política tutelar no estado. A derrota de Lobão será por isso vista como a sua derrota e esse resultado “sinaliza o esgotamento dos modelos oligárquicos na gestão do Estado”, o que será “um avanço na democracia brasileira”, na opinião de Francisco Gonçalves, professor universitário de Jornalismo e actual presidente da Fundação Municipal de Cultura de São Luís.

Como explicar o “esgotamento” da rede de poder tecida ao longo de 50 anos pelo mais longevo político da história do Brasil? Márcio Jardim diz que em causa está um processo comparável ao da “fadiga do material”. “A população cansou-se, mas eles cansaram-se também”, diz Jardim, membro do directório nacional do PT. Fora do Senado (José Sarney, 84 anos, não se recandidata), o patriarca político do Maranhão deixará de ter o mesmo grau de influência na gestão das nomeações ou na repartição de recursos. E sem esse poder de mediação, deixa de haver a cola que unia a sua estrutura de poder. “Há muitos prefeitos do Estado a mudarem-se para a minha candidatura”, diz a propósito Flávio Dino. Em 2010, quando Dino se candidatou pela primeira vez ao governo do Maranhão (perdeu para Roseana Sarney) conseguiu o apoio de dois dos 217 prefeitos: este ano conta com 30 ao seu lado, garante.

A história da conquista do poder pela oposição começou precisamente nessa altura, nas eleições de 2010. Depois de ter cumprido um mandato como deputado federal (o candidato do PC do B, um partido sem implantação num território remoto e conservador, obteve 123 mil votos), Dino disputou a última eleição para o Estado sem ser capaz de promover a ampla aliança de oposição que conseguiu hoje. Hoje como então, o PT ficou de fora. Para garantir o apoio do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), no qual Sarney é uma referência histórica, a Dilma, o PT viu-se obrigado a apoiar Roseana e, agora, Lobão Filho. Mas este apoio, que Márcio Jardim considera “envergonhado e constrangido”, gerou uma revolta nas bases. Uma parte dos militantes do partido de Lula opôs-se às orientações nacionais do partido e criou o Comité Flávio-Dilma. O que acabou por ser tolerado pela cúpula do PT, que inclusivamente se preocupou em mandar material de campanha para o comité.

Com excepção do partido de Lula e Dilma, Dino foi capaz de reunir à sua volta “uma ampla aliança política que vai da esquerda até ao centro”. Todos os que protestam contra a era Sarney estão lá, diz o candidato. Para reforçar as suas pretensões de criar uma frente de oposição, “recebemos o apoio dos movimentos sociais”. Entre os quais o da poderosa Federação dos Trabalhadores da Agricultura, próxima do PT, que tem sindicatos em todos os municípios do Maranhão. Com São Luís e Imperatriz, a segunda cidade do Estado, tradicionalmente colocadas na oposição ao poder instituído, esta rede de apoio a Dino conseguiu estender o seu movimento até às zonas mais remotas de um estado que é quase quatro vezes maiores do que Portugal, embora seja pouco povoado (6.8 milhões de habitantes).

Consolidada a estrutura, Flávio Dino, neto de portugueses de Braga (o irmão tem nacionalidade portuguesa), definiu a sua estratégia de campanha e privilegiou a aposta “no desgaste dos Sarney”. Para lá da questão da segurança pública, que as televisões nacionais propagaram por todo o país mostrando as imagens de autocarros incendiados na capital do Estado, a coligação de nove partidos em torno do PC do B tratou de demonstrar que 50 anos de poder de Sarney tiveram como legado um dos piores índices de rendimento per capita do país (2578 euros por pessoa/ano, contra 19492 de Portugal, por exemplo) e um dos mais baixos índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. No primeiro caso, o Maranhão só fica à frente do vizinho Piauí e no segundo só Alagoas está em pior situação.

José Sarney contesta as críticas. “O Maranhão é o 16º estado do Brasil mais rico em termos de PIB. Essa é outra mentira que se divulga. Uma da forma de me atacarem é atacarem o Maranhão. O Maranhão é o único estado fora do centro sul com o PIB mais alto. Temos o segundo porto do Brasil em termos de movimento. No ano passado crescemos 10%” diz. Quanto ao IDH, “é um índice que foi feito para países ricos. Se olhamos para o IDH diremos que a China é um país paupérrimo e é a segunda economia do mundo”, precisa.

Certo é que estas explicações, ou a apresentação de vários exemplos que provam o desenvolvimento do estado, não parecem convencer os eleitores. Lobão Filho, que apesar de várias insistências não respondeu aos pedidos do PÚBLICO para uma entrevista, tem dificuldades em fazer passar a sua mensagem. O domínio das redes de comunicação do Estado (o grupo Mirante de Sarney e o grupo Difusora dos Lobão controlam jornais e televisões e gerem uma ampla rede de estações de rádio no interior) não bastam para contrariar a tendência da campanha. Embora lhe tenham introduzido tensão. Cartoons no Estado do Maranhão onde Flávio Dino aparece com a foice e o martelo em perseguição de uma criança, publicado no dia do pai, ou a exibição no telejornal de um vídeo anónimo no qual um presidiário acusa Dino de ser chefe de uma quadrilha são hoje vistos pela candidatura do PC do B como “actos de desespero”.

José Sarney não acredita “que as eleições estejam decididas”, mas na candidatura de Dino fala-se já na possibilidade de uma vitória na primeira volta. Depois de conquistar o poder ao oligarca Victorino Freire em 1965, uma das figuras mais poderosas e controversas da história política do Brasil contemporâneo arrisca-se a sair de cena, deixando pela primeira vez o poder do “seu” Maranhão nas mãos da oposição. Flávio Dino, o “comunista” que aparece denunciado em pichagens nas paredes da capital, arrisca-se a gozar uma pequena vingança contra o então Presidente do Senado que, acusa, tudo fez para o afastar de um cargo político após a sua derrota para Roseana em 2010 – apesar da oposição de Sarney, que Dino denuncia, o ex-magistrado acabaria por ser nomeado para a presidência da Embratur, a empresa nacional de turismo. Longe do Senado e do Estado, a lenda dos Sarney tenta agora perpetuar-se através de Sarney Filho, candidato a deputado Federal, e de Sarney neto, Adriano, que corre por um lugar na assembleia estadual. Talvez seja pouco para um homem que soube manter o poder na ditadura militar e ampliá-lo na democracia.

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