O mosaico que é o Brasil: mestiçagem ou racismo?

Os diferentes estratos, sedimentações, peças e fragmentos que vemos na exposição Histórias Mestiças evocam esse mosaico de culturas que é o Brasil. Porém, o modo de entender tal mosaico extravasa a exposição e só a custo pode ser reduzido à figura do mestiço e à prática da mestiçagem.

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Fotografia feita por volta de 1860, no Recife, representando um menino junto à ama de leite
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O retrato de Mário de Andrade por Cândido Portinari
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"Operários", de Tarsila do Amaral, de 1933

Bem entrado o século XVIII, um viajante estrangeiro perguntou a um índio do Brasil:

– Porque pinta você o seu corpo?
– Porque não pinta você o seu – respondeu o índio. Quer-se parecer com um animal?

Histórias como esta ilustram bem o direito à diferença nas relações entre culturas. A seu lado, na exposição intitulada Histórias Mestiças do Instituto Tomie Ohtake de São Paulo, que permanecerá até Outubro, constam: artefactos das inúmeras culturas ameríndias e africanas que compõem o Brasil, obras-primas da sua pintura modernista, telas descritivas dos séculos XVII a XIX, fotografias, desenhos, instrumentos de trabalho, de coerção ou de carácter ritual e, pelo menos,  uma instalação de grandes dimensões que pretende reconstituir o sentido de um candomblé. Neste último caso, a recriação da cerimónia é levada a sério, mas exige marcação que só contempla um reduzido número dos visitantes.

Sem preocupações exaustivas, o inventário de todos esses fragmentos – num total de 400 objectos – sugere que o Brasil é um mosaico de culturas. Compõem-no muitas e variadas sedimentações, em camadas tantas vezes contraditórias que mais se parecem anular umas às outras do que convergir num qualquer processo de mestiçagem ou de miscigenação.

Tal como se a exposição transcendesse o seu próprio título. Quer porque este não cobre a riqueza de significados da própria exposição, quer também por haver conotações de mestiço ou de mestiçagem que nem por sombras parecem adequadas ao que é mostrado. Ou, muito simplesmente, tal como se o conceito de mestiço fosse inadequado para dar conta do mosaico, que a exposição oferece – inadequado, note-se bem, por conter em si ecos de uma imagem de fusão luso-tropicalista cara a Gilberto Freyre.

Ora o que sucede com a exposição é que ela concede autonomia às culturas africanas, em parte reinventadas no Brasil, em comunidades de escravos, quilombos formados à custa de fugas bem sucedidas ou bairros suburbanos. A mesma autonomia encontra-se, também, nos inúmeros utensílios, instrumentos rituais e formas simbólicas associados aos grupos de ameríndios. É o que acontece com os objectos que Claude Lévi-Strauss recolheu para o, então, Musée de l’Homme de Paris, presentes na exposição. Paralelamente, vários são os géneros e as disciplinas a partir dos quais tem sido feita a valorização – que, neste caso, quer dizer conhecimento e uso – de tais culturas, pelo menos desde finais do século XIX.

Os estudos de Mário de Andrade – grande intelectual brasileiro do século XX, responsável pela Semana da Arte Moderna de 1922 e autor de Macunaíma (1928) – sobre as danças africanas e, mais em particular, o samba rural em São Paulo demonstram a força do olhar douto, moderno, sobre aquilo que muitos consideravam primitivo ou selvagem, a ponto de suscitar discriminações e racismos. Por isso, o retrato de Mário por Cândido Portinari não podia estar ausente da mostra.

Porém, é numa das fotografias que mais interpelam o visitante que se encontram melhor os traços de racismo e violência que caracterizam esse mosaico que é o Brasil. Trata-se de uma fotografia feita por volta de 1860, no Recife, representando um menino junto a sua ama, ambos vestidos para a ocasião, encenada por família e fotógrafo. Na antologia de textos que serviu de base para a preparação da exposição, o historiador Luiz Felipe Alencastro explica melhor que ninguém o sentido da mesma fotografia, ao descrever que a ama não se tinha movido:

“Presa à imagem que os senhores queriam fixar, aos gestos codificados de seu estatuto. Sua mão direita, ao lado do menino, está fechada no centro da foto, na altura do ventre, de onde nascera outra criança, da idade daquela. Manteve o corpo erecto, e do lado esquerdo, onde não se fazia sentir o peso do menino, seu colo, seu pescoço, seu braço escaparam da roupa que não era dela, impuseram à composição da foto a presença incontida do seu corpo, de sua nudez, de seu ser sozinho, da sua liberdade”.

“O mistério dessa foto feita há cerca de 130 anos chega até nós. A imagem de uma união paradoxal mas admitida. Uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. Na violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço afectivo que está sendo invadido pelo filho de seu senhor. Quase todo o Brasil cabe nessa foto”.

Mais do que enaltecer a capacidade descritiva no belo texto de Alencastro, o que mais importa é perceber o modo como uma fotografia desta natureza nos pode ajudar a pensar a violência, a discriminação e o racismo, no rés-do-chão, ou seja, no quotidiano do mosaico brasileiro.

Em 2008, Serge Gruzinski organizou em Paris, no Museu do Quai Branly, uma outra exposição intitulada Planète Métisse: to mix or not to mix. A entrada impressionou-me. Umas plumas que, logo, julguei de índio, nas suas cores garridas, do vermelho ao amarelo torrado, pareciam representar um qualquer artefacto de chefe índio da Amazónia. Mas, afinal, a surpresa estava no paradoxo. Tratava-se de um colete de alta costura num tronco de manequim assinado por Jean-Paul Gautier. O propósito de uma tal encenação era evidente: consistia em lançar a ambiguidade, própria de qualquer operação ou conceito de mestiçagem, em que se atenuam os contrastes, a ponto de pólos opostos poderem passar a ser reversíveis. A ambiguidade era também lançada em relação aos modos de representação do real, empolando a sua carga estética. A alta costura (ou alta cultura) imitava artefactos indígenas. Ao “choque de culturas” – conceptualização com que Samuel P. Huntington pretendeu descrever o mundo pós-Guerra Fria – , Gruzinski opôs um planeta de ambíguas mestiçagens.

A exposição Histórias Mestiças, que Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz souberam organizar, não cede tão facilmente às operações de estetização das relações dos colonos e das elites brasileiras com os grupos de escravos e de descendentes de africanos e ameríndios. Ao visitar as suas seis salas – Mapas e Trilhas; Máscaras e Retratos; Emblemas Nacionais e Cosmologias; Ritos e Religiões; Trabalho; Tramas e Grafismos – constata-se mesmo uma clara intenção de contrariar essas mesmas operações, de dois modos diferentes.

Primeiro, terminando de uma vez por todas com o cânone da grande pintura, douta, sobretudo modernista, auto-sustentado por ideias de arte pela arte ou de reinvenção das formas geométricas e abstractas. Por isso mesmo, as telas de Portinari ou de Tarsila do Amaral são expostas ao lado do trabalho de pintores índios e de muitos outros artefactos. E é, aliás, nesta sobreposição de registos, que melhor encontramos o próprio sentido do mosaico que o Brasil forma. A este respeito, Lilia Schwarcz confessou o mal estar que a mesma dessacralização já teria provocado junto dos curadores dos museus de arte, que têm à sua guarda os pintores modernistas mais consagrados.

Um segundo modo de quebrar essa mesma estetização – que surge geralmente sob a forma da imputação de uma determinada estética, considerada nova porque douta, a níveis culturais relegados para baixo – está fundado na atenção conjunta que a exposição dá tanto aos rituais, como à questão do trabalho. É que se os rituais, com os seus instrumentos simbólicos e encenações, percorrem a exposição, a presença constante da questão do trabalho, a começar pela da escravatura, constitui a melhor forma de eliminar falsas operações de estetização.

A seriedade com que a exposição foi preparada, ainda antes da publicação do catálogo, pode também ser comprovada pela interessante antologia de textos de reflexão que os dois curadores entretanto publicaram.

Haverá na exposição em causa aspectos semelhantes aos que o visitante encontra no Museu Afro Brasil. Emanuel Araújo, o seu director, está bem presente no museu que dirige. Artista plástico baiano da geração de Maria Betânea e Caetano, cidadão do mundo, grande conhecedor das culturas africanas, com particular incidência nas do Golfo da Guiné, o seu museu provoca no visitante uma revolução. Também ali se encontram – até à exaustão e numa escala que nenhuma exposição temporária poderá reproduzir – as provas de sedimentações variadas na criação e no dinamismo transbordante das culturas africanas. Ficando dele excluídas as culturas ameríndias, os processos de criação artística envolvendo africanos, a começar pelos escultores que trabalharam nas diferentes igreja do barroco brasileiro e dos pintores dos séculos XIX e XX que formaram um novo cânone de artistas, são vistos a par das representações da cultura africana no Brasil. Impossível esquecer esses fatos de orixás, com a sua exuberância e cores garridas!

Ao sair do Museu Afro Brasil, do outro lado do Parque Ibirapuera, num outro edifício de Niemeyer, lá estava a Bienal de Arte de São Paulo. Este ano, sob o lema da politização e da intervenção. Porém, frente  ao que vi no Instituto Tomie Ohtake e no Museu Afro Brasil, a Bienal parecia  não passar de uma figura pálida.

Foi, então, que me lembrei que as histórias da exposição, tal como as do museu lembravam um confessionário escrito por um jesuíta por volta de 1700, que permanece em manuscrito na Biblioteca Mário de Andrade. Para esse padre anónimo, a questão do Brasil no período colonial tinha nome e uma causa principal: a escravatura. Os pecados em que a sociedade brasileira de então vivia tinham origem no carácter lascivo, erótico e sexual dos escravos. Com as suas danças diabólicas e, no espaço doméstico, com as suas insinuações malévolas tinham contaminado toda a sociedade que se transformara num teatro de vícios. A perversão dos costumes provinha, pois, de baixo. Só acabando com o tráfico é que o problema se resolveria. O projecto de abolição da escravatura do jesuíta tinha, assim, origem numa atitude de profundo racismo – ódio racial – em relação aos africanos que viviam no Brasil. 

Enfim, é a partir dos diferentes estratos, sedimentações, peças e fragmentos  – como os que se encontram em Histórias Mestiças, nas colecções de Emanuel Araújo do Museu Afro Brasil e na Biblioteca Mário de Andrade – que será possível compreender melhor esse mosaico de culturas que é o Brasil. Só não sei, repito, à guisa de conclusão, se o modo de entender um tal mosaico fica contido na figura do mestiço e na prática da mestiçagem. Pessoalmente, creio que não.

Historiador

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