Fantasmas coloniais

O argumento deste livro é que o colonialismo português foi produto do “nosso impensado”

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O esgotamento do método do ensaísmo psicanalítico de Eduardo Lourenço? Rui Gaudêncio

Eduardo Lourenço ocupa no nosso país, desde o final dos anos 1940, um lugar central na reflexão ensaística, filosófica e literária. Segundo os organizadores do livro, as suas perspectivas críticas, com uma evidente “amplitude e lucidez de visão”, consagraram-no “como um dos grandes intérpretes de Portugal”. Neste volume das obras completas de Lourenço – um projecto paralelo ao da catalogação do seu acervo a cargo de João Nuno Alçada –, as interpretações da pátria versam sobre a questão colonial.

O livro é composto por um total de 26 capítulos de inéditos ou de textos publicados após 1975 ou 1976, exceptuando o primeiro capítulo, cuja primeira versão, dedicada a Miguel Urbano Rodrigues e a Vítor Cunha Rego, foi editada em 1961, em São Paulo. Neste texto, Lourenço pronunciava-se sobre as Comemorações Henriquinas. Estas, no seu entender, correspondiam a “30 anos ininterruptamente comemorantes”. Mas o objectivo, corajoso, do artigo foi também o de denunciar a vinda do presidente Kubitschek a Lisboa, em 1960, como uma “caução do colonialismo” de Salazar. A mesma coragem, aliás, é confirmada num texto do autor que saiu à luz na mesma altura, incompreensivelmente esquecido neste volume. De facto, foi a respeito de um livro de Gilberto Freyre, cujas ideias foram utilizadas pelos círculos oficiais para criar uma espécie de ideologia oficial, que Lourenço prolongou as suas denúncias, onde afirmava que “as suas sínteses abusivas, os seus slogans primários são o emblema de cruzadas duvidosas” (A propósito de Freyre (Gilberto), O Comércio do Porto, suplemento Cultura e Arte, 11-7-1961, p. 5).

Qual o argumento principal que este livro propõe? Conforme indica o título: o colonialismo português, enquanto processo histórico com diferentes configurações, foi produto do “nosso impensado” – resultado de uma imperial absent mindedness. De acordo com o autor, na ausência de um pensamento imperial em Portugal (de uma “autêntica consciência imperial – à maneira romana ou inglesa”), o que existiu foi apenas um “mito literário intermitente”. Só alguns raros colonos é que tinham um “projecto imperial”, que consistia em “inventar, desbravar, submeter, explorar até ao sangue (negro)”. E o regime de Salazar, em particular, “deu origem a uma das mais grotescas mitologias colonialistas de que há memória”: a metrópole tinha colónias mas não as podia assumir enquanto tal e os “malabarismos luso-tropicalistas” de Freyre “forneciam a necessária caução científica a esta operação mágica”.

Depois, a falta de pensamento dos tempos coloniais ou imperiais foi herdada pelos tempos pós-coloniais, da descolonização: “Num caso e noutro: sem problemas. A não problematização da história portuguesa (com a excepção de Oliveira Martins) é uma das características capitais da consciência nacional, e essa ausência de olhar crítico sobre nós está relacionada justamente com o facto de sermos os prodigiosos autores de uma gesta de colonização que nunca nos pôs problemas. Quando os houve, e graves, foram os outros que no-los puseram”.

Se bem entendo o sentido dos textos de Eduardo Lourenço, face à inexistência de um pensamento imperial e à incapacidade de assumir a questão colonial, o que preponderaram foram os mitos, logo, a metodologia idónea para os tratar é a “psicanálise histórica”.

Porém, terá sido mesmo assim que as coisas se passaram? Será que os fantasmas coloniais que nos atormentam e dos quais nos precisamos de curar, compostos de mitos que vão desde Os Lusíadas ou da História trágico-marítima a Gilberto Freyre, são o cerne das várias configurações de uma ideologia colonial que atravessou séculos? E onde colocar o luso-tropicalismo no pensamento colonial do Estado Novo, por mais débil que fosse? Para quem já denunciou as “sínteses abusivas” de Freyre, não será que apenas na condição de slogan destinado à provocação, é que se poderá aceitar tamanha generalização acerca da “não problematização da história portuguesa (com a excepção de Oliveira Martins)”? E será mesmo verdade que a questão colonial só foi levantada pelos outros (estrangeiros?) e nunca pelos que nela estiveram envolvidos, e bem conscientes, dos projectos imperiais?

Numa linguagem quase telegráfica, própria da recensão breve, o argumento que contraponho é que o império, nas suas diferentes configurações, suscitou um permanente debate e sucessivos projectos, desde o século XV ao XXI. Pode mesmo dizer-se que o império foi saturado por projectos de vária ordem, em todos os tempos. Ou seja, da carta de Bruges do Infante D. Pedro à Arte da guerra no mar de Fernando de Oliveira, dos discursos seiscentistas dos chantres de Évora aos escritos de Alexandre de Gusmão, de Rodrigo de Sousa Coutinho a Henrique de Carvalho, de Alfredo Freire de Andrade a José Osório de Oliveira, de Vitorino Magalhães Godinho a Alfredo Margarido, cruzam-se as discussões e os projectos. Mais perto de nós, não se pode passar ao lado e prescindir da leitura atenta tanto dos estudos sobre o romance colonial, como da antropologia e história do império – áreas de enorme desenvolvimento nas últimas décadas.

Finalmente, não haverá neste livro de Eduardo Lourenço a postura do profeta que, para anunciar a virtude do seu método – o de uma psicanálise colectiva da identidade portuguesa –, tem de criar uma espécie de vazio sob a forma de um “impensado”? Ou será que os apelos à prática da história, que também se encontram no livro, anunciam, pura e simplesmente, o esgotamento desse tal método do ensaísmo psicanalítico? 

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