Mary Wigman ressuscitada

Fabián Barba devolve-nos o corpo da coreógrafa alemã como se ela dançasse entre nós, 40 anos após a sua morte.

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Fabián Barba recriou "artesanalmente" os solos da alemã Mary Wigman BART GRIETENS

Fabián Barba gosta de arriscar. Apanhar o avião e cruzar o Atlântico até Bruxelas para continuar os seus estudos de dança na escola de Anne Teresa de Keersmaeker talvez não tenha sido o mais aventureiro dos gestos deste rapaz que começou aos 12 anos a fazer dança moderna em Quito, no Equador. A Mary Wigman Dance Evening, concerto-performance (para recuperar uma expressão do colectivo nova-iorquino Judson Dance Theater) que criou em 2012, sim, é um imenso salto de fé – até uma noite perdida entre 1929 e 1930 em que a coreógrafa alemã Mary Wigman (1886-1973) apresentou as suas “danças feiticeiras”.

É uma viagem, a peça que Fabián Barba traz ao Festival Materiais Diversos (próxima quinta-feira, dia 25, no Teatro Virgínia, em Torres Novas) –uma viagem que nos leva àquilo "que se imagina que possa ter sido” aquela noite. Com aquele corpo, naquele palco, acrescentando camadas de interpretação a uma decisão que, vemos agora, é da ordem do sublime. A Mary Wigman Dance Evening não é um homem travestido que dança minuciosamente os gestos de uma mulher, é um corpo que se inscreve no mundo e nos resgata de uma apatia dormente para perguntar se estamos disponíveis para acreditar.

Olhar para os movimentos de Wigman – que se encontram, por exemplo, em múltiplos vídeos no YouTube – é perguntar se a dança pode ser política sem ser ideológica. Quando A Mary Wigman Dance Evening se apresentou no Museum of Modern Art, em Nova Iorque, Fabián Barba falou da dificuldade de descrever Wigman então como agora. Após um sucesso retumbante na Alemanha, a coreógrafa fez três digressões nos Estados Unidos da América, onde lhe deram o cognome de “Deusa da dança”. Mas “aqueles primeiros anos não foram fáceis”. Explicou Barba: “No início dos anos 20, quando ganhou algum reconhecimento na Alemanha, o seu trabalho era ao mesmo tempo revolucionário e de enorme impacto popular. Mas a partir de 1933, continuando Wigman a trabalhar na Alemanha apesar das máquina burocrática e ideológica do Partido Nacional Socialista, as suas posições foram objecto de aceso debate.” O coreógrafo equatoriano observa que o impacto desses debates pode perceber-se na dança de Mary Wigman, sem que, contudo, se esclareça “o que era resistência e o que era acomodação”.

Para chegar a A Mary Wigman Dance Evening, Fabián Barba partiu da leitura e da análise de três dos solos da coreógrafa, recriando depois seis outras peças a partir de material de arquivo. O modo como foi colando os movimentos, num processo que tem tudo de artesanal, recusa a ideia de mimetização e aposta na intuição para poder viver aquele corpo como se fosse o seu.

“Tanto quanto sei, Wigman e os seus contemporâneos referiam-se ao seu trabalho como danças abstractas puras. Inicialmente nada disso me pareceu fazer sentido. Pela minha formação, consigo reconhecer a abstracção em Merce Cunningham ou no Trio A, de Yvonne Rainer. Nas danças de Wigman havia demasiada emoção, demasiada intenção de transcender uma significação. Mas percebi mais tarde que para Wigman a ideia de abstracção vinha da ausência de narrativa: não havia uma história, não havia pantomima, não havia personagens."

Oitenta anos depois do aparecimento das peças que agora recria, 40 anos depois da morte de Mary Wigman, o que interessa agora a Fabián Barba é perceber como esse movimento abstracto pode resistir num mundo saturado de imagens. E se é possível reconstruir, através do seu corpo, as sensações em tempos provocadas pelo corpo de Wigman.

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