Pode o novelo de recursos do caso Isaltino vir a repetir-se no Face Oculta?

“Dantes usavam-se os pedidos de aclaração para prolongar o prazo de recurso, e isso terminou. Mas nada impede que sejam inventados outros expedientes dilatórios”, avisa procurador. Afinal, “expedientes dilatórios vai haver sempre”.

Foto
Adriano Miranda

Chamavam-lhes expedientes dilatórios, mas a partir de certa altura começaram a ser conhecidos nalguns meios judiciais por um nome bem mais pitoresco: "isaltinices". Ou não tivesse o antigo presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais, apresentado mais de quatro dezenas de recursos e reclamações antes de esgotar todas as suas hipóteses na justiça e de ser encarcerado na Carregueira por 426 dias.

A ministra da Justiça ditou-lhes então sentença de morte: "Os cidadãos não suportam mais processos que se arrastam anos e anos e que muitas vezes prescrevem. O Governo tem em preparação legislação para revisitar as prescrições e pôr fim aos expedientes dilatórios", declarou Paula Teixeira da Cruz quando o autarca foi detido por 23 horas e posto em liberdade logo a seguir, no final de 2011. E assim fez: mudou as leis, as penais e as cíveis, que também se aplicam subsidiariamente ao crime. Há um ano, quando pôs cá fora o novo Código de Processo Civil, a governante decretou mesmo o "fim dos expedientes dilatórios". Mas será mesmo assim?

O PÚBLICO tentou saber, junto de vários juristas, se se pode repetir com os arguidos do caso Face Oculta o mesmo novelo de recursos do caso Isaltino, apesar da nova legislação. A resposta não é linear, e alguns dos mais conhecidos penalistas recusam-se a contribuir para esta reflexão. Motivo: estão a trabalhar na defesa de alguns dos implicados no caso da rede de influências movidas por Manuel Godinho.

Segundo o Ministério da Justiça, desde 2013 que deixou de ter utilidade para os arguidos deitarem mão de sucessivos recursos com o objectivo de fazerem prescrever os crimes pelos quais estão acusados: “Enquanto estiverem pendentes os recursos, inclusivamente para o Tribunal Constitucional, os prazos de prescrição páram de correr, podendo permanecer assim parados por um período de tempo que pode chegar aos 20 anos, se se tratar de processo de especial complexidade”. Mas há sempre um "mas", e o Face Oculta não é excepção. É que os crimes que os juízes de Aveiro consideraram terem sido praticados por estes arguidos remontam ao período entre 2002 e 2009, altura em que ainda não tinham sido banidas do Código Penal as "isaltinices" – ou as garantias de defesa dos arguidos, conforme o lado a partir do qual se olha para a questão. 

E, à semelhança de muitas leis, também nesta se aplica o princípio da não retroactividade, fazem notar vários especialistas. O procurador da República João Conde Correia dá um exemplo: imagine-se que alguém cometeu um acto considerado hediondo pelas pessoas, acto esse que não era, porém, até aí considerado crime. “Não se ia fazer uma lei em cima da hora para punir essa pessoa: em matéria de lei penal vigora um rigorosíssimo princípio da irretroactividade”. Simplificando: os prazos de prescrição aplicáveis aos crimes do Face Oculta - associação criminosa, corrupção activa, tráfico de influências e burla qualificada, entre outros - serão menos dilatados. Essa é também a opinião quer do ex-bastonário dos advogados Rogério Alves quer do advogado Carlos Almeida Lemos, da sociedade Abreu Advogados.

A Rogério Alves não agrada o discurso da ministra sobre a matéria das prescrições, por o considerar um tanto populista. “A impunidade combate-se com leis claras e escorreitas, que não abdiquem das garantias e com tribunais dotados de meios técnicos e auxílio pericial, capazes de decidirem depressa e bem. Não com o com o arrastamento dos prazos de prescrição para o infinito”. Para o antigo bastonário - que defendeu um ex-administrador do BCP no processo das contra-ordenações que Jardim Gonçalves viu prescreverem e teve outro cliente no processo de Isaltino Morais, entretanto absolvido - “a prescrição não é, nem de perto, nem de longe, o factor de amparo de qualquer impunidade”, não tendo a política de diminuição de garantias dos suspeitos e de aumento das custas judiciais praticada nos últimos anos “tido quaisquer resultados positivos”.

Carlos Almeida Lemos deixa também uma ressalva: o contributo decisivo para a prescrição de processos-crime como estes “não é nem a fase de julgamento nem a de recursos da decisão proferida em primeira instância, mas a fase de inquérito, muitas vezes por falta de meios colocados à disposição do Ministério Público”.

Nos processos de maior dimensão existem mais probabilidades de serem usados expedientes dilatórios, admite o procurador João Conde Correia. Mas a lei penal não permite “partir” um mega-processo para o julgar aos pedaços, nem, como na justiça anglo-saxónica, “julgar meia dúzia de factos mais importantes e esquecer tudo o resto”, com tudo o que isso acarreta para as vítimas dos crimes menores.

Costuma dizer-se que onde há dois juristas há três opiniões e este caso não é excepção. Com experiência em casos tão complexos como a Casa Pia, o penalista Paulo Sá e Cunha admite que possam ser aplicados aos crimes dos arguidos do Face Oculta os prazos de prescrição da nova lei, dado que era esta que estava em vigor no momento em que foi proferida a sentença, há menos de dez dias – muito embora lhes sejam mais desfavoráveis. “Esta é uma questão muito antiga e muito discutível”, observa o advogado, para quem as garantias dos arguidos “não se podem levar a este extremo”.

Um segundo aspecto relevante na comparação entre o Face Oculta e Isaltino relaciona-se com os limites impostos aos respectivos recursos, a chamada recorribilidade. Isaltino percorreu toda a cadeia hierárquica dos tribunais, da primeira instância até ao Supremo, passando pelo Constitucional. Chegou a fazer uma segunda volta por todos eles. Nesta matéria, aplica-se a lei em vigor à data da sentença – que é também deste Governo e que estipula que “só pode haver recurso para o Supremo quando as penas aplicadas pelo Tribunal da Relação sejam de prisão e em medida superior a cinco anos”, como esclarece o Ministério da Justiça, adiantando que o objectivo é “reservar a disponibilidade do mais alto tribunal judicial para os casos mais graves”. Ou seja, estará vedado a Armando Vara o recurso para o Supremo. Carlos Almeida Lemos faz, porém, notar que mesmo estas penas “são impugnáveis junto do Tribunal Constitucional, para verificação de alguma inconstitucionalidade”. E que mesmo a limitação dos cinco anos de cadeia “revela uma manifesta e clara violação dos direitos de defesa do arguido”.

Mas também esta questão não é pacífica, sublinha o procurador Conde Correia: “A recorribilidade é das matérias mais levadas ao Tribunal Constitucional, por continuar a suscitar muitas dúvidas”. Em Junho passado o Tribunal Constitucional obrigou o Supremo Tribunal de Justiça a aceitar o recurso de um acórdão da Relação que aplicou quatro anos e meio de prisão efectiva a um traficante de estupefacientes que em primeira instância havia sido condenado a pena suspensa.

Todos os juristas contactados pelo PÚBLICO – mesmo os que só aceitaram falar sob anonimato – concordam numa coisa: por muito que tal tenha sido anunciado, as novas leis nestas matérias não trazem de facto grandes mudanças. “Foi modesta a intervenção do legislador em matéria de recursos”, diz um estudioso do novo Código de Processo Civil, cujas normas podem ser subsidiariamente aplicadas ao processo penal. A mais recente alteração deste corpo de normas acaba, por exemplo, com os chamados pedidos de aclaração – a possibilidade de os advogados pedirem aos juízes para esclarecerem alguma ambiguidade ou obscuridade da decisão. “Dantes usavam-se os pedidos de aclaração para prolongar o prazo de recurso, e isso terminou. Mas não impede que sejam inventados outros expedientes igualmente dilatórios”, avisa Conde Correia. Afinal, conclui, “expedientes dilatórios vai haver sempre”. Resta saber se os juízes os continuarão a aceitar.

Sugerir correcção
Comentar