Uma face feia do país retratada ao longo de 2781 páginas

Durante sete anos Manuel Godinho conseguiu bons negócios em concursos ganhos através de subornos. Controlou políticos e dirigentes de empresas públicas, cuja influência classificava de A a G em listas de prendas, e chegou a discutir com eles a demissão de uma governante. Mas não conseguiu comprar um modesto vigilante. Estas são as teias do caso Face Oculta que, apoiado em escutas e testemunhos, o acórdão do Tribunal de Aveiro desfia.

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Adriano Miranda

Manuel Godinho, 59 anos, sai da sala de julgamento pálido e curvado. O Tribunal de Aveiro aplicou-lhe uma pena pesada, 17 anos e meio de prisão efectiva. Ameaça cair e um familiar ampara-o pelas escadas abaixo até à saída. Não parece possível que vá ali ali o cérebro que concebeu o plano descrito no acórdão do colectivo de juízes que, no dia 5 de Setembro, o condenaram. Durante sete anos, subjugou políticos e várias empresas públicas.

Este é o mesmo homem que Armando Vara descreveu um dia como apenas um bom amigo, que não recorria a subornos, mas apenas a prendas simpáticas. “Acho que lhe ofereci uma caixa de alheiras”, disse então o ex-ministro socialista, mostrando-se aos juízes como um bom promotor das iguarias de Vinhais, a sua terra. Godinho ofereceu-lhe robalos e pão-de-ló.

Não pelos robalos, mas por três crimes de tráfico de influências, Vara foi condenado a cinco anos de prisão efectiva.

Em 2002, o sucateiro de Ovar, como ficou conhecido, tinha já 11 empresas e dava emprego a 140 pessoas. As empresas do Estado no sector dos transportes e energia pareceram-lhe a melhor fonte de rendimento. Recorreu aos poucos contactos que tinha então e, a partir deles, foi construindo uma teia com ligações a políticos que foi reforçando em sucessivos almoços e jantares.

Os factos dados como provados e as comunicações interceptadas pela PJ descritas ao longo de 2781 páginas de acórdão permitem acompanhar das relações de um grupo influente, do qual o sucateiro de Ovar foi a figura central.

Depois de toda uma infância a trabalhar com o pai na fábrica familiar de produção de cordas e de três anos, já adulto, a vender batatas num negócio próprio, Godinho angariou dinheiro suficiente para conseguir lançar empresas na área do comércio de ferro e recolha de resíduos

O empresário conhece uma das peças fundamentais da sua rede de influência em 2002, precisamente no ano em que avançou com o plano. Armando Vara, ex-ministro socialista e ex-administrador da Caixa-Geral de Depósitos, é-lhe apresentado por Lopes Barreira, com quem o político criara a Fundação para a Prevenção Rodoviária. Trocam telefones pessoais e passam a encontrar-se frequentemente em almoços organizados pelo gestor de empresas e consultor Lopes Barreira, de quem Vara é amigo há mais de vinte anos.

Lopes Barreira fundou o grupo Engenharia Consulgal, SA, em 1983, e criou, com outros quatro sócios, a Vileira – Sociedade Hoteleira e Turística que explora o “hotel de charme” Vileira, em Vimioso. Nos anos 70, foi responsável, como administrador residente, pela construção dos estaleiros do Bahrein. Teve igual papel na Arábia Saudita. É uma pessoa influente que, segundo o processo, se relaciona com “os mais altos representantes dos países em que trabalhou”.

Durante sete anos, o universo empresarial de Godinho beneficia de relações de privilégio que construiu com empresas como a REN, a Refer, a CP, Estradas de Portugal, EDP, Lisnave, Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra, Estaleiros de Viana do Castelo e Petróleos de Portugal.

Amigos classificados de A a G
No centro do que o tribunal entendeu ser o meticuloso plano de Godinho está uma lista de prendas oferecidas pelo Natal a dirigentes de empresas públicas. É com elas que o empresário apela às intenções dos decisores. Os dirigentes são classificados de A a G, de acordo com a importância daquilo que revelam conseguir influenciar a favor de Godinho. Na avaliação, o empresário de Ovar tem em conta as mais-valias que eles significam nas decisões para garantir a vitória em concursos públicos e adjudicações, assim como o acesso a informação privilegiada sobre o funcionamento das empresas.

Armando Vara, figura com classificação de topo, recebe nos sucessivos natais um estojo com um “decantador Herdade de Prata” (685 euros), uma caneta Dupont (260 euros) um relógio avaliado em mais de 2500 euros, outro relógio superior a 3700 euros e uma caneta Mont Blanc. Recebe ainda uma oferta que se revela fulcral. Um telefone especial oferecido por Godinho só utilizado para com ele falar sobre negócios.

Godinho recorre a Vara em 2009, ano de eleições autárquicas e legislativas. Um litígio judicial e extrajudicial com a Refer e problemas no relacionamento com o seu banco habitual, o Finibanco, fazem com seja cada mais vez difícil as suas empresas receberem o que facturam.

Carril Dourado
Os problemas com a Refer resultam num processo judicial que fica conhecido por Carril Dourado, por analogia com o processo Apito Dourado, então na agenda mediática. Godinho e dezenas de funcionários da sua empresa O2 -  Tratamento e limpezas Ambientais, roubam em 2004, 559 toneladas de carris de um troço já encerrado na Linha do Tua. Arrancam e levam dali quase oito quilómetros de carris e travessas de madeira, em dois pontos da linha férrea, em Salselas, Macedo de Cavaleiros, avaliados em mais de 40 mil euros.

Antes disso, no Inverno de 2001, na sequência de obras de emergência na Linha do Douro, a Sociedade de Empreitadas Ferroviárias, também de Godinho, apresenta à Refer uma factura de 387 mil euros relativa a trabalhos que nunca foram feitos.

A sociedade discriminou máquinas que nunca estiveram afectas à obra e contabilizavam mais de 24 horas de trabalho diárias. Godinho factura 26,84 euros por hora por cada funcionário lá colocado quando na proposta inicial os mesmos funcionários ganhariam 16,31 euros por hora. Age então da mesma forma com que actuara em inúmeras situações, sobrefacturando os serviços prestados, nomeadamente na recolha de resíduos através da manipulação das pesagens.

O engenheiro José Magano Rodrigues, funcionário da Refer, e António Silva Correia, coordenador do Eixo Douro e Minho, colaboram com Godinho. Pelo menos Silva Correia recebe uma garrafa de cristal “Zanzibar” (128 euros), um balde de gelo grande “Zanzibar” (101 euros), um decanter com base de prata (465 euros), uma “jarra light grande” (131 euros), outra garrafa de vinho e um decanter. Nenhum fiscaliza os trabalhos nem corrige os valores. A Refer paga tudo, mas o seu conselho de administração acaba por descobrir os desvios, abre uma comissão de inquérito e decide colocar duas acções em tribunal contra a O2. Mais tarde fará o mesmo em relação aos seus dois funcionários, entretanto suspensos.

Godinho estava em apuros. Precisava de ajuda para normalizar as relações com a Refer. No fim-de-semana de 7 e 8 de Fevereiro, é convidado de Vara na Festa do Fumeiro, de Vinhais. Conta ao então vice-presidente do Millennium BCP as dificuldades por que passa e pede-lhe ajuda. Quer que ele intervenha a nível político para alterar as intenções da Refer. Quer ainda que o BCP passe a adiantar o dinheiro das facturas cuja cobrança à Refer, desconfiada e com pouca vontade de pagar, tardava.

Vara dá indicações ao banco para estudar a possibilidade e promete que tal se resolve, se Godinho depositar pelo menos 250 mil euros no BCP.

Entre Fevereiro e Julho de 2009, Godinho almoça oito vezes com Vara. Umas vezes viaja até Vinhais, outras ruma a Lisboa. Na capital, almoçam várias vezes no restaurante Mercado do Peixe.

O ex-ministro faz questão de apresentar a conta dos serviços a Godinho. O empresário entrega-lhe um envelope com 25 mil euros. Fá-lo durante um almoço na casa do empresário no Furadouro, em Ovar. Cumpre assim o que havia acordado numa chamada telefónica. Em linguagem cifrada estabeleceram que o pagamento seria de “25 quilómetros”. Está também lá Lopes Barreira que recebe um envelope com a mesma quantia. Godinho chega a prometer financiamento ao Partido Socialista.

"O problema" Ana Paula Vitorino
A missão é a mesma, para Vara e Lopes Barreira: pressionar o ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Mário Lino, para que os problemas de Godinho com a Refer se resolvam. Godinho desejava pôr fim ao litígio com a Refer através de um acordo extrajudicial, mas o presidente da administração da empresa, Luís Pardal  insistia em ver o assunto resolvido na justiça .  Vara e Lopes Barreira garantem-lhe que esse gestor público não se manterá no cargo. A então secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino, também sairia do Governo, prometem.

Godinho recorre ainda a Carlos Vasconcellos, quadro da Refer, para obter informação privilegiada sobre o posicionamento do conselho de administração da empresa. Encontram-se no restaurante O Batista, em Vilar, Aveiro. Godinho dá a Vasconcellos 2500 euros e um cartão de telemóvel, para com ele manter contacto directo.

“Eh pá! A tua amiga Ana Paula Vitorino, a gente tanta praga lhe roga que a gaja mandou um estouro e ficou de cama. A gaja caiu e ficou toda partida”, comenta Vasconcellos com Godinho, antes de um chorrilho de comentários insultuosos sobre a governante, no dia 18 de Fevereiro 2009, numa de muitas conversas telefónicas interceptadas pela PJ.

Ana Paula Vitorino opõe-se à saída de Luís Pardal. A secretária de Estado era, por isso, referida por Godinho como “o problema”. Um problema, porém, que o empresário contava ver rapidamente resolvido. “A Ana Paula vai-se embora”, promete Lopes Barreira numa conversa interceptada em Dezembro de 2009. Godinho pediu-lhe para que não lhe falasse “nisso ao telemóvel”. Preferia que o fizessem “pessoalmente”.

Em Julho de 2009, Lopes Barreira e Armando Vara contactam Mário Lino. Dão-lhe conta da má relação entre a O2 e a Refer. Para eles, a empresa pública continuava a prejudicar Godinho nos concursos públicos de adjudicação na área da recolha de resíduos. Defendem a demissão de Luís Pardal.

Mário Lino telefona de seguida ao presidente da Refer e tenta convencê-lo a ser mais simpático com Godinho e as suas empresas. O ministro fala ainda com Ana Paula Vitorino, secretária de Estado que tutela a Refer. Refere-se à O2 com “uma empresa amiga do PS” e sugere que a secretária de Estado devia levar isso em conta. Recorda-lhe, aliás, de que ela faz parte do secretariado nacional do PS. Ana Paula Vitorino recusa estes argumentos. Mais tarde, ao depor em tribunal, contou que terá respondido ao ministro que “nem queria ouvir falar nesse assunto” e que o seu lugar no secretariado nacional do partido lhe dava “preocupações acrescidas de seriedade”.

Por esta altura, Godinho sabe que a O2, condenada a pagar mais de cem mil euros à Refer na primeira instância, foi absolvida no Tribunal da Relação do Porto. É informado da decisão judicial dias antes da sua publicação. O juiz titular do processo foi alvo de inquérito e reformou-se entretanto, no decorrer da inspecção de que foi alvo. Godinho liga de imediato a Lopes Barreira que promete dar conta da decisão ao Governo. Lopes Barreira pede à secretária para marcar uma reunião com Ana Paula Vitorino.

“Queria que lhe ligasse, se faz favor, amanhã. A dizer que tenho urgência em falar com ela. Já andamos nisto há tanto tempo. Se ela quiser guerra, eu ligo para o gabinete do primeiro-ministro”, promete Lopes Barreira. “E aí quem fica mal é o Mário Lino, não é?”, questiona a secretária. “O Mário Lino não. Porque o Mário Lino tem uma coisa ao fundo das costas, pá! Tem medo de tudo”, responde Lopes Barreira. 

O encontro acaba por acontecer poucos dias depois, mas não resulta a favor das pretensões de Lopes Barreira. Ana Paula Vitorino diz-lhe que o presidente da Refer tem todo o seu apoio e sublinha-lhe que se quer a substituição de Luís Pardal deve então também reclamar a sua. Os dois voltam poucos dias depois a abordar a questão durante um almoço. Ana Paula Vitorino volta a responder-lhe da mesma forma e acaba com a conversa, como contou depois ao tribunal.

A socialista não continuou no Governo, após as eleições legislativas. A Refer recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça da absolvição da empresa de Godinho e viu ser-lhe dada razão. A O2 foi condenada a pagar 12.600 euros à empresa pública.

Mercedes como prendas
Armando Vara é também essencial a Manuel Godinho nas relações com a EDP – Imobiliária. É por intermédio do político que o empresário fica a conhecer pessoalmente Domingos Paiva Nunes, vogal do conselho de administração da empresa. Em Maio de 2009, Vara recebe Godinho no seu escritório do BCP, na Avenida José Malhoa, em Lisboa. Vara liga para Paiva Nunes, marido de uma prima do ex-primeiro-ministro, José Sócrates, e agiliza contactos. Godinho segue para o escritório de Paiva Nunes num edifício na mesma rua e alcançam um acordo. Godinho dá a Paiva Nunes um Mercedes SL500 avaliado em mais de 32 mil euros. O automóvel foi entregue em Junho, depois de um almoço entre ambos na casa de Godinho, no Furadouro.

O quadro da EDP usa o veículo oferecido para se dirigir a um terreno da Rua do Ouro, no Porto, onde as empresas de Godinho haveriam de obter, mais tarde, a adjudicação de obras de remoção de resíduos. A EDP seria multada em mais de 200 mil euros pela autarquia, se não procedesse à limpeza do terreno. Assim foi notificada.

No local, Godinho mostrou-se muito satisfeito com as perspectivas que Paiva Nunes lhe abriu. “Tenho aqui uma obra do carago!”, disse o sucateiro num telefonema ao seu filho Paulo.

O sucateiro acabou por ganhar o concurso para a remoção de resíduos por 370 mil euros numa empreitada avaliada depois em apenas 85 mil euros por uma entidade independente, o Instituto de Soldadura e Qualidade.

A descoberta ocorreu numa auditoria posteriormente realizada pela EDP na qual se concluiu que a quantia estava sobrevalorizada e que o concurso tinha sido viciado. Paiva Nunes deixou Godinho indicar as outras empresas que seriam convidadas para concurso.

O empresário de Ovar dispôs ainda de avultadas verbas para granjear a lealdade de outros gestores ou funcionários de empresas públicas que o tribunal condenou: foi assim com Carlos Vasconcellos, quadro superior da Refer, a quem deu 2500 euros; Manuel Guiomar, da Refer, que recebeu 5110 euros; Manuel Gomes, director do departamento de aprovisionamento da Lisnave, a quem deu dez mil euros; e João Tavares, chefe de armazém da Petrogal, que ganhou 12500 euros.

Um vigilante honesto
Porém, Godinho, que comprou dirigentes por milhares de euros, não conseguiu na REN - Rede Eléctrica Nacional subornar um vigilante.

Em Setembro de 2008, Manuel Godinho, encontra o vigilante Pedro Correia da Prossegur na subestação do Alto Mira da REN na Amadora, Lisboa. Estende-lhe a mão, a cumprimentá-lo. Na mão iam também 20 euros, para que Pedro Correia não o denunciasse sobre a manipulação dos talões de pesagem das cargas dos camiões. O vigilante rejeita a nota e participa do sucateiro de Ovar aos superiores na empresa e a um responsável pela subestação.

Godinho tinha razões para temer o vigilante. Em 2006, durante todo o mês de Julho, o segurança regista, por iniciativa própria, as horas de entrada e de saída dos camiões de Godinho e a identificação dos condutores. Surpreende-se com o que descobre. Os camiões saíam quase vazios, apesar de os talões de pesagem indicarem que os veículos iam totalmente carregados. E as horas de saída e de regresso não eram compatíveis com a distância percorrida entre a central e as instalações da empresa, em Canas de Senhorim. Sem fiscalização da REN, a O2 inflaciona o uso de camiões e as cargas nestes, facturando assim mais serviço.

Mas, por azar, o segurança denuncia a situação ao responsável pela gestão de contratos da REN, Juan Oliveira, que colaborava com Godinho. O vigilante continua a vistoriar os camiões. “Temos de algum tempo a esta parte, e depois de várias chamadas de atenção, notado que algo de estranho se passará com estas supostas cargas. Os carros têm andado (a nosso ver) a passear dentro e fora”, avisa o funcionário da REN Raul Calado num e-mail enviado em Setembro de 2006 ao gestor local de resíduos de Alto Mira.

A remoção dos resíduos é interrompida e a REN não aceita os valores de carga indicados pela O2. Mas, após uma sucessão de reuniões, tudo se resolve e a O2 fica beneficiada, facturando as pesagens iniciais.

A relação com José e Paulo Penedos
Na REN, o empresário de Ovar serve-se de Paulo Penedos. É advogado na O2, mas raramente desempenha aquelas funções. Através de Paulo consegue chegar ao pai deste, José Penedos, também socialista e presidente da REN.

Em Fevereiro de 2009, Paulo Penedos pede um empréstimo de 25 mil euros a Manuel Godinho, alegando estar a passar por algumas dificuldades financeiras. Diz-se “aflito” e lamenta não poder pedir um empréstimo aos pais, porque “eles ficariam logo em pânico”. Godinho, como de outras vezes, concede. Entre Janeiro de 2006 e Outubro de 2009, entrega a Paulo Penedos mais de 1,2 milhões de euros. Mas só quase 500 mil euros ficam realmente para este.

Paulo Penedos tem acesso a toda a informação de gestão na REN e influencia o pai para decidir a favor do universo empresarial de Manuel Godinho. Interessam ao empresário os contratos de recolha e valorização de resíduos. Consegue assim que o conselho de administração da empresa adjudique à O2 a gestão global de resíduos das várias centrais geridas pela REN.

José Penedos tem a categoria mais alta na lista de prendas de Natal de Manuel Godinho. Recebe um “centro de mesa Grand Lagoon” (1432 euros), uma fruteira sem asas (1939 euros), uma jarra em prata (1689 euros), uma caneta Dupont (260 euros), um cantil português (296 euros), um “cantil D. João II” (330 euros) e um “cantil espanhol” (320 euros). Em troca decide a favor das empresas de Godinho e dá-lhe informações privilegiadas – por vezes, com um mês de antecedência – sobre os concursos públicos que a REN ia lançar.

José Penedos quase nunca fala pelo telemóvel. Nem com o filho. Falam todos os dias no prédio onde ambos moram, na Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa. O pai no 6.º e o filho no 8.º andar.

Paulo Penedos resolve todos os problemas de Manuel Godinho na REN. Em Junho de 2009, o empresário de Ovar queixa-se de outra empresa que assume o encaminhamento dos resíduos na subestação de Setúbal face a uma alteração da lei que atribui essa responsabilidade ao empreiteiro. A O2 é notificada para sair. “Esta situação é muito grave. Se for assim, eu abdico de tudo e mando lixar isto”, diz Godinho ao telefone com Paulo Penedos. “Já lhe digo alguma coisa, calma”, pede o advogado, prometendo ligar ao pai. Três minutos depois, Paulo Penedos telefona ao pai queixando-se de que Godinho continua a fazer “patifarias”. A situação resolve-se como Godinho pretendia.

O empresário de Ovar consegue escapar também à fiscalização da GNR na estrada. Os seus camiões, com cargas diferentes das referidas nas guias correspondentes, nunca são parados pela guarda. Em Abril de 2006, empregou na 02, Isabel Oliveira, mulher do militar da GNR André Oliveira. Godinho passou a receber informação sobre todas as operações de fiscalização planeadas por aquela força de segurança, escapando assim a acções em que pudessem ser detectadas irregularidades nas guias de transporte dos camiões das suas empresas.

Um arrependido
Manuel Godinho administrava as suas empresas e controlava os seus funcionários com uma “suprema autoridade”, descreve o processo. E nem o seu braço direito, o contabilista Namércio Cunha, escapava a isso como se depreende de um telefonema que lhe faz e que é interceptado pela Polícia Judiciária em Janeiro de 2009.

- Óh pá, mas eu não estou a perceber! Eu telefono-te, tu não atendes, mas o que é isto?

- Eu estava lá em baixo. Não tinha o telemóvel comigo. Logo que cheguei agora aqui e vi, liguei-lhe, pá.

- Vê lá isso, porque eu não gosto muito disso.

Foi precisamente Namércio Cunha, o leal súbdito que servia de intermediário de Godinho nos negócios e geria a lista das prendas de Natal oferecidas aos outros arguidos, quem fez implodir o universo empresarial construído à custa de subornos de figuras-chave na política e nos negócios.

Namércio, que veio a ser condenado a uma pena suspensa de 18 meses de prisão, decidiu colaborar com a PJ. Tinha com ele toda a informação de que os investigadores necessitavam para desmantelar a rede e condenar Godinho. “Eu só tenho a agradecer a toda a minha família, a todos os meus amigos próximos que desde a primeira hora estiveram comigo. Eu gostava de não ter estado cá. Isto é uma lição de vida que fica comigo e não desejo a ninguém”, disse, à saída do tribunal, Namércio Cunha, que ficou conhecido como “o arrependido”.
 

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