Nas eleições brasileiras, o debate do aborto faz-se na bienal de arte

As bolivianas Mujeres Creando lutam na Bienal de São Paulo pela despenalização do aborto e apontam o dedo aos governos latino-americanos de esquerda. “É uma questão de classe.”

Fotogaleria
Criança dentro de um dos sete "úteros" de Espaço para abortar Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo
Fotogaleria
A estrutura central da peça representa as pernas abertas de uma mulher Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo
Fotogaleria
Maria Galindo, do colectivo Mujeres Creando, no dia da inauguração da Bienal de São Paulo Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo
Fotogaleria
Mulheres pegam na estrutura de metal da peça para uma marcha no Parque Ibirapuera Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo
Fotogaleria
A escultora Esther Argollo lado-a-lado com as brasileiras que se juntaram à iniciativa Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo
Fotogaleria
Espaço para abortar é "muito transparente, muito luminoso", diz Maria Galindo Leo Eloy/Fundação Bienal de São Paulo

Quem tem medo de debater o aborto? Subir a um palanque e dizer: eu sou a favor. Não do aborto, claro – da despenalização do aborto. No Brasil, os principais candidatos às eleições presidenciais preferem o silêncio. Ou jogam a cartada da democracia adivinhando resultados de eventuais referendos num país muito marcado pela religião. É o caso de Marina Silva, que é contra, seguindo os preceitos evangélicos que a levaram a retirar a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo do seu programa de governo, e que sugere um plebiscito.

Em São Paulo, no entanto, há um grupo de feministas que está apostado em forçar o debate público sobre o tema, que afecta milhões de mulheres no Brasil e na América Latina, uma das regiões do mundo com maiores restrições à interrupção voluntária da gravidez. O colectivo chama-se Mujeres Creando e é boliviano. Convidadas a participar na 31.ª Bienal de São Paulo, as activistas – bastante mediáticas no seu país de origem – criaram um “espaço para abortar”, um enorme círculo que apoia uma peça em metal que representa as pernas abertas de uma mulher e sete estruturas tubulares vermelhas – úteros – nas quais é possível entrar.

É impossível obliterá-lo. Está logo à entrada do pavilhão Ciccillo Matarazzo, para que seja a primeira obra que os visitantes da Bienal vêem assim que chegam ao edifício do Parque Ibirapuera. No dia da abertura da mostra, no sábado, as Mujeres Creando pegaram na parte central da peça – as “pernas” e um dos “úteros” – e andaram com ela pelo parque, replicando a marcha que tinham feito, semanas antes, na Bolívia, com a participação de muitas mulheres.

A invulgar acção de retirar o essencial de uma obra na inauguração tinha sido antecipada ao PÚBLICO dias antes por Maria Galindo, figura destacada do grupo: “Vamos levantar a estrutura central, entre mais de cem mulheres, levá-la ao parque e gravar os testemunhos de abortos clandestinos no Brasil com as mulheres que o quiserem. Esses testemunhos vão ficar aqui durante toda a Bienal. Porque acreditamos que essa palavra é muito importante”.

O número de abortos ilegais realizados anualmente no Brasil estima-se entre os 800 mil e 1 milhão. Como consequência directa das condições precárias de grande parte deles, morrem em média 300 mulheres por ano. Em 2010, um estudo da Universidade de Brasília coordenado por Débora Diniz e Marcelo Medeiros permitiu traçar pela primeira vez o perfil destas mulheres e estimar quantas abortaram pelo menos uma vez. Os dados são avassaladores: 15% das 2002 mulheres que participaram admitiram tê-lo feito, o que extrapolando para a população nacional representa um total de 5,3 milhões de mulheres em idade reprodutiva (18-39 anos).

O perfil encontrado rechaçava peremptoriamente os argumentos minados por preconceitos que denunciavam o aborto como um método contraceptivo de mulheres inconscientes e desarvoradas: 64% das que abortaram são casadas, 81% são mães e 88% têm religião (65% das quais são católicas e 25% protestantes). A esmagadora maioria das mulheres que aborta tem mais de 25 anos. No que diz respeito à classe social, o aborto é uma realidade transversal: 23% ganham até um salário mínimo, 31% de um a dois, 35% de dois a cinco e 11% mais de cinco.

O perfil é o da mulher comum. Então, o que leva os principais candidatos a Palácio do Planalto, incluindo duas mulheres, a deixar o tema de lado? “Ninguém quer arriscar perder votos ao defender posições ‘polémicas’, que só são tabu porque dizem respeito a minorias que historicamente sempre tiveram seus direitos tolhidos: homossexuais, pessoas trans, mulheres, negros, indígenas”, defende Aline Valek no blogue Escritório Feminista da revista Carta Capital.

Esquerda direitizou-se
Maria Galindo vai mais longe e acusa os governos latino-americanos de esquerda de não cumprirem promessas e de se aliarem aos poderes mais conservadores para se manterem no poder. “Na América Latina, através de governos como os de Dilma Rousseff, Evo Morales, Cristina Kirchner, prometeu-se uma mudança social que não aconteceu. No caso do meu país [Bolívia, liderado por Morales desde 2006], fez-se uma aliança com a Igreja Católica, a igreja evangélica fundamentalista e o fundamentalismo indígena para preservar o poder”, denuncia a artista ao PÚBLICO.

“A princípio, pensávamos que a esquerda estaria mais próxima das mulheres. A penalização do aborto é algo que atinge as mulheres pobres e jovens. É uma questão de classe. Tens dinheiro, ainda que seja ilegal, praticas um aborto; não tens dinheiro, morres”, frisa Maria Galindo, que usa os conceitos de despenalização e de legalização lado-a-lado. “A esquerda latino-americana está a fazer um discurso de direita. A esquerda direitizou-se para conservar o poder.”

Em 2010, durante a campanha para a sucessão de Lula da Silva, Dilma Rousseff escreveu uma carta para ser distribuída pelos espaços de culto religioso, comprometendo-se a não alterar a lei do aborto caso fosse eleita (nem a legislar a favor do casamentos entre pessoas do mesmo sexo). Prometeu e cumpriu. Marina Silva disse na mesma campanha ser contra a prática, mas sugeriu que deveria haver um debate nacional sobre o tema e depois um plebiscito.

A “chapa” por que Marina – que há dias reiterou a sua posição – concorria há quatro anos, o Partido Verde, é agora um dos dois que se diz a favor da descriminalização. O candidato é Eduardo Jorge. O outro é o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), através de Luciana Genro.

O aborto é legalmente tido como um crime contra a vida humana desde os tempos do Estado Novo brasileiro, quando foi criado o terceiro código penal do país, que continua em vigor. A data é 1940. Todavia, a lei actual é de 1984 – ou seja, no limite, mas ainda da ditadura militar – e proíbe a interrupção da gravidez, excepto se houver risco de vida para a mãe e caso a gravidez tenha resultado de violação. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) acrescentou uma terceira prerrogativa: em situação de anencefalia do feto, é possível abortar legalmente.

A decisão judicial, que se limitava a reconhecer uma prática médica comum mas que acautelava casos em que as mulheres eram obrigadas a completar a gestação de nados-mortos, provocou polémica e manifestações a favor e contra. Já este ano, os sectores mais conservadores encontraram mais uma razão para bradar os seus argumentos. Aconteceu quando foi publicada uma portaria que regulamentava a prática do aborto (necessariamente legal) e tabelava o preço que o Estado pagaria aos seus hospitais por cada operação. Os protestos foram tantos que o Ministério da Saúde revogou a legislação pouco depois.

Criminalização social
Em toda a América Latina, apenas três países possibilitam às mulheres a interrupção voluntária da gravidez: Cuba, Uruguai e Guiana. A Cidade do México, também. Os restantes dividem-se em grupos com diferentes tipos de excepção à regra – que é a ilegalidade da prática. Entre eles, o Brasil até é dos menos restritivos: a decisão do STF abriu a porta ao aborto por malformação do feto. Mas é nesta região do globo que se concentra a generalidade dos poucos países que impedem liminarmente o aborto, sem apelo nem agravo: Chile, Nicarágua, El Salvador e República Dominicana. Só encontram par no mundo em Malta e no Vaticano.

“As mulheres estão a lutar num momento muito conservador em relação ao tema da maternidade”, alerta Galindo, congratulando-se com a presença na Bienal. “Acreditamos que um fórum como este pode gerar uma polémica muito importante a favor desta luta.” Para não afastar ninguém do debate, optaram por fazer “uma instalação que não é uma vitimização, que não é dramática, que não é mórbida, que não está manchada de sangue, que é um espaço muito transparente, muito luminoso, que apela ao sentimento poético da existência de uma mulher que decide abortar como um acto de liberdade pessoal”. Uma instalação que é encimada por um slogan: “Nem boca fechada nem útero aberto”.

“Acreditamos que as mudanças sociais são feitas de baixo para cima. No Brasil, estão duas mulheres a disputar as eleições, Dilma e Marina [mais Luciana Genro, são três]. E o aborto faz parte da polémica eleitoral. É importante fortalecer as vozes das mulheres que defendem a despenalização do aborto. A nossa obra terá esse efeito”, antecipa Maria Galindo. A escultora Esther Argollo, que também integra as Mujeres Creando, acrescenta: “A despenalização do aborto deve ser urgente. Trata-se dos nossos corpos. Estamos cansadas de que as igrejas, de que os homens, de que os políticos falem dos corpos das mulheres, que decidam sobre nós.”

Galindo insiste na questão de classe: “Enquanto falamos, está a abortar uma mulher. Outra mulher a abortar. Sempre mulheres pobres. São as que estão em risco de vida. As outras companheiras estão numa clínica de estética ou de qualquer outra coisa praticando um aborto tranquilamente. É uma questão de dupla moral, de hipocrisia, uma questão da democracia-lixo que vivemos na América Latina.”

Os abortos clandestinos são das principais causas de morte entre mulheres latino-americanas. No Brasil, é a quarta. Nos anos 1990, era a primeira. Na Argentina, ainda é, segundo dados do site Aborto en Latino América, apresentados pelo ginecologista Bernardo Oscar Acuña, que integra o Consorcio Latinoamericano Contra el Aborto Inseguro. De resto, as idiossincrasias nacionais geram particularidades legislativas esdrúxulas que desmoralizam as mulheres. Na Bolívia, o aborto é permitido às mulheres em casos de “rapto não seguido de matrimónio”.

Ainda na Bolívia, que é o país que Maria Galindo conhece melhor, as mulheres que optam por uma operação clandestina não cumprem penas de prisão de um a três anos, como prevê a lei, quando são apanhadas. Mas “há uma criminalização real”. “Quando uma mulher em processo de aborto chega a um hospital público, é muito mal tratada pelos médicos”, diz a activista. “Nas escolas, se uma rapariga abortou, vai ou quer abortar, sente-se completamente marcada. Funciona uma criminalização social do aborto.”
 
O jornalista viajou a convite do Groupe Allard
 

Sugerir correcção
Comentar