U2 ensaiam novas formas de chegar ao público num álbum onde procuram a energia inicial

Através de uma nova estratégia de aproximação ao público com a Apple, no novo álbum os U2 procuram recolocar-se no caminho de uma música enérgica e retemperadora.

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U2 PAOLO PELLEGRIN
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U2 PAOLO PELLEGRIN

Há uns anos Bono afirmava que as verdadeiras estrelas rock já não eram pessoas como ele, mas gente como Steve Jobs, o falecido mentor da Apple. “É como ele que todos os jovens ambicionam ser”, dizia.

O vocalista dos U2 nunca escondeu a admiração pela forma como Steve Jobs e a Apple contribuíram para revolucionar a forma como experienciamos a música, com o iPod, o iPhone, o iPad ou a loja iTunes. “Steve Jobs é um poeta, um artista e um homem de negócios”, viria a afirmar um dia.

Bono também o é. É artista, activista e homem de negócios. Esta terça-feira os U2 lançaram, de forma inesperada, o seu 13º álbum de originais, Songs Of Innocence, durante a apresentação do novo iPhone e iWatch da Apple, num evento em Cupertino, na Califórnia, durante o qual tocaram The miracle (of Joey Ramone), o tema que abre o álbum.

Já tinham participado noutras acções conjuntas, mas agora foram mais longe no consórcio. O álbum foi disponibilizado gratuitamente para meio milhão de utilizadores do iTunes, de 119 países, e poderá ser ouvido por outros milhões por streaming através da iRadio e do Beats Music. A 13 de Outubro será editado fisicamente.

“Este é o maior lançamento de sempre de um álbum”, afirmou às tantas Tim Cook, chefe executivo da Apple, orgulhoso pela operação. O acontecimento apanhou quase toda a gente desprevenida, mas a parceria nada teve de inesperado. É claro que não se tratou de um gesto de beneficência da Apple para com os utilizadores do iTunes. Nem os U2 acreditam em música gratuita. Foi o próprio Bono a dizê-lo. É negócio. Não se sabem todos os contornos do mesmo, mas a Apple tem interesse em ser associada à maior banda rock em actividade e os U2 desejam que  a sua música seja distribuída pelo maior número de pessoas.

O grupo tem estado atento às transformações da indústria da música na última década e meia. Há muito que perceberam que a forma de excitar a curiosidade do público tinha que mudar. O ano passado David Bowie, Beyoncé, Arcade Fire ou Kanye West já haviam mostrado o caminho. Não foram apenas os seus álbuns que foram notícia. Foi também a forma como foram publicados ou promovidos. E o que é mais importante: essas acções tiveram o efeito de reforçar o vínculo entre esses artistas e admiradores.

Os U2 parecem tentar o mesmo. Desde sempre que Bono foi crítico da forma como as grandes editoras enfrentaram a revolução digital, sendo ultrapassadas pelos acontecimentos. Enquanto a indústria olhava para a internet como o inimigo, a Apple percebeu que a relação com o consumidor não podia ser de repressão, mas de sedução. Não espanta que Bono olhe para a Apple como parceira, num momento de transição em que têm de ser ensaiadas novas formas de estar no mercado.

“Estou excitado com o futuro. Está a vir depressa e não quero ser atropelado por ele” dizia Bono no livro Bono por Bono (2005), enunciando dessa forma que as transformações operadas pela internet, e pelas novas tecnologias em geral, não o assustavam.

Pelo contrário, queria entendê-las e participar no seu fluxo. Para isso, claro, é preciso ter algo para oferecer. E os U2 aí estão com um novo álbum de originais, com muita gente a procurar pontos de ruptura ou de continuidade em relação ao passado recente. Qualquer coisa de semelhante acontece quando a Apple coloca um novo produto no mercado, discutindo-se se é realmente algo de novo ou mera actualização do que já existia.

O novo álbum dos U2 não é o tipo de obra que vá redefinir a vida do grupo. É mais o tipo de disco que procura recolocá-los no caminho de uma música que exale paixão e uma energia retemperadora. Como se fosse a primeira vez.

A capa tenta reproduzir essa candura artesanal. As letras de alguma forma também, embora seja uma inocência matizada. Não há grandes causas. Há autobiografia. Reflecções sobre o passado e as origens. É um disco sobre rituais de iniciação.

A faixa de abertura, The miracle (of Joey Ramone), dá o tom, focando o efeito que o rock simples e directo dos americanos The Ramones teve no grupo, enquanto Cedarwood road é sobre a rua de Dublin onde o cantor cresceu. Iris (hold me close) foi escrita para a mãe, que morreu quando Bono tinha apenas 14 anos. É talvez a canção mais sentimental de todo o disco. Hold me close, canta ele, I’ve got your light inside me.

This is where you can reach me now é dedicada a Joe Strummer e celebra o espírito de dedicação a causas dos The Clash, enquanto California (there is no end to love), é tanto sobre a primeira visita do grupo a Los Angeles, como sobre o efeito que os Beach Boys e Brian Wilson tiveram sobre Bono.

Uma das canções mais directas é Volcano, celebração eficaz do poder do rock & roll, enquanto Every breaking wave parece ter sido concebida para que o grupo não perca terreno na competição com os discípulos que nos últimos anos têm tocado para grandes multidões (Snow Patrol, The Killers, Coldplay).

Não parece ter sido um disco fácil de compor. Passaram seis anos sobre o último álbum, No Line On The Horizon, e três sobre a última digressão, 360 Degree Tour. Existiram sessões de estúdio com o produtor americano Danger Mouse (Broken Bells, Gnarls Barkley) e, mais tarde, com o inglês Paul Epworth e Ryan Tedder, ambos habituados a conviver com estrelas pop de sucesso. Dos velhos conhecidos, apenas Mark Ellis (Flood) também esteve envolvido.

Duas das canções que se afastam mais do som habitual do grupo foram produzidas por Danger Mouse – a balada digital Sleep like a baby tonight e a canção que fecha o disco, The troubles, que conta com a participação vocal da sueca Lykke Li. Ou seja, há momentos onde o grupo arrisca, saindo da zona de conforto, mas a maior parte das canções são os U2 como sempre os conhecemos, oferecendo música rock aditiva, com coros cantaroláveis, envolvidos por uma vitalidade retemperadora.

Uma energia que vai ser posta à prova no próximo ano quando voltarem às digressões. É que apesar do efeito de acontecimento agora conseguido é aí que tudo se verdadeiramente decide hoje em dia. Tal como a Apple, os U2 sabem que aguçar a curiosidade é determinante. A distribuição massiva do álbum agora encetada garante isso. Depois virão os concertos, onde até poderiam tocar apenas os êxitos do passado que daí não viria mal nenhum ao mundo.

Mas os U2 são o tipo de grupo que deseja manter-se relevante e quando arrancam em digressão tem que existir uma nova estratégia de aproximação ao público e novo disco. O primeiro passo já foi dado. A operação Innocence está em marcha.

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