Costa, Seguro e a questão da confiança

Seguro está em plena crise de despeito, agravado com cada reforço que Costa vai somando.

A realização de eleições primárias no Partido Socialista, abertas a simpatizantes, é uma inovação que deve ser saudada por quantos se vêm batendo pela abertura dos partidos políticos portugueses a uma maior participação dos cidadãos.

Sendo a primeira vez que ocorre num grande partido português, é com expectativa que tenho acompanhado a campanha dos dois candidatos. Para além de lamentáveis incidentes registados, venho seguindo as mensagens dos candidatos e os comentários sobre elas. Mas as acusações de António José Seguro ao seu camarada, nomeadamente ao considerar um acto de “traição” a disponibilidade de António Costa para disputar a liderança do PS, levam-me a tomar posição pública sem hesitação.

É preciso que fique muito claro que, em democracia, criticar a liderança e ambicionar a sua substituição são actos normais, não são “traições”. Tenho uma longa experiência de crises partidárias, designadamente no PSD de Sá Carneiro, e aprendi por mim própria que o poder é um fenómeno que mexe com as emoções das pessoas. A generalidade das grandes divergências que no passado atravessaram o PSD e que pude viver de perto teve essa componente, surgindo na vivência dos militantes como difíceis “divórcios” internos, com toda a sua sequela de despeitos, mágoas, acusações recíprocas e, muitas vezes, irracionalidade. É humano e não nos devemos admirar que assim seja. Por isso digo há muitos anos que o poder é um fenómeno da ordem do passional.

O que se passa com António José Seguro é dessa natureza: está em plena crise de despeito, agravado com cada reforço que Costa vai somando. E não consegue entender que acima dos partidos e das suas disputas internas está o interesse do país. O que Costa fez foi interpretar esse interesse apresentando a sua disponibilidade para liderar o PS de forma mais mobilizadora. Seguro vangloria-se de ter ganho todas as eleições; mas os resultados que o PS obteve durante a sua liderança estão muito aquém do que seria de esperar.

A crise em Portugal assumiu uma dimensão trágica – desemprego, aumento exponencial da pobreza, desaparecimento da classe média, desrespeito sistemático pelos idosos e pensionistas, desvalorização dos serviços públicos e dos seus agentes. A inquietação que atravessa muitas camadas de eleitores exprime-se de vários modos – basta ver a multiplicação de partidos dissidentes do Bloco, ou o surgimento de epifenómenos eleitorais como o de Marinho Pinto. É assim, não apenas normal, mas altamente salutar, em minha opinião, que dentro do PS se tenha perfilado uma pessoa com vontade e capacidade para mudar os dados de uma situação insustentável e perigosa. Eu própria incentivei António Costa, sugerindo-lhe que devia tentar no país o que tem feito em Lisboa – governar em contraciclo, aproximar e aproximar-se das pessoas, construir maiorias plurais sólidas.

É por tudo isto que apoio, com convicção e esperança, o esforço de António Costa e de todos os socialistas que não se conformaram com o pouco que o PS conseguiu nas últimas eleições. Seguro sentir-se-á injustiçado. Pensa que fez tudo direitinho para “lá” chegar e não tolera o desafio que lhe foi lançado. Podia tê-lo resolvido com mais elegância e rapidamente, convocando um Congresso Extraordinário do PS. Não o quis. Resolveu deixar tudo arrastar-se e inventou em último recurso as “primárias”, julgando que tal lhe daria toda a vantagem. Enganou-se. Ao mesmo tempo, usou contra Costa uma dureza que nunca o vimos ter contra o Governo PSD-CDS. Agora colhe o fel amargo das suas próprias escolhas.

Claro que num confronto desta natureza não são as diferenças ideológicas o que mais importa. Elas não são profundas entre os dois candidatos, ou haveria uma cisão partidária à vista. Do que se trata é de diferenças de percurso, de mundividência cultural, de visão estratégica, de atitude e de carisma. E isto é mais do que suficiente para determinar as tais “diferenças” que alguns comentadores não vislumbram, porque passam ao lado do essencial: a escolha eleitoral é determinada, não apenas pelos interesses, mas sobretudo pela confiança. E esta é uma resultante do balanço que cada qual faz dos candidatos em presença. Costa inspira confiança. Seguro até à data não o tem conseguido.

Portugal precisa de mudar de governo e de políticas e essa mudança passa necessariamente por uma renovação e reafirmação do PS. Os resultados das primárias serão, espero, um reforço da sua vitalidade democrática, com uma nova liderança, mais mobilizadora e mais capaz. E isso será um cimento interno que irá contribuir, estou certa, para lançar, com novas energias, o arranque da alternativa que se impõe.

Arquitecta, Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa e apoiante de António Costa para as primárias do PS

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