Portugal dos pequeninos

Os Maias segundo João Botelho não é uma adaptação reverente do clássico de Eça, e é aí que reside a sua grande vitória e a sua fidelidade ao espírito do romance.

Foto
Os Maias: uma parada de costumes de uma capital prisioneira das aparências, onde todos estão constantemente em cena como num palco

Comecemos pelo bom, pela grande vitória de João Botelho ao atirar-se aos imortais Maias de Eça de Queiroz: a de olhar para o livro não como um manual de instruções a cumprir à risca, mas como um guia de leitura.

Não é a adaptação convencional que muitos esperam ou desejariam – e ainda bem; de leituras reverentes de clássicos estamos nós fartos, e como não temos a tarimba dos ingleses também não vale a pena andarmos a armar ao pingarelho. Este é um filme fiel ao espírito do livro, mesmo que não à sua forma; o artificialismo distanciado e assumido, a construção da história de Carlos da Maia em “quadros” ou “cenas” que parecem saídos de uma ópera escarninha, são perfeitos para dar a dimensão de “fogueira das vaidades” da Lisboa de 1875 vista por Eça. Os Maias segundo João Botelho são uma parada de costumes de uma capital prisioneira das aparências, onde todos estão constantemente em cena como num palco permanente onde importa mais parecer do que ser. É aí que o filme se eleva muito alto, logo a partir do genérico que cria um imediato efeito de distanciamento; é uma espécie de filme-pantomima, de ópera (bufa) de bolso de um Portugal dos pequeninos, sublinhada pelo romantismo exacerbado das escolhas musicais, pela opulência da fotografia de João Ribeiro, pelo artificialismo aguarelado dos telões de João Queiroz que fazem a vez de exteriore

Mas se estes Maias são francamente conseguidos enquanto adaptação do romance, não deixamos de ter algumas reservas em relação à sua concretização. A maior tem a ver com o par Graciano Dias/Maria Flor como Carlos e Maria Eduarda, a quem falta na maior parte do tempo a febre apaixonada que propulsiona a sua história, e cujas performances empalidecem perante a justeza do fabuloso Pedro Inês em João da Ega ou de Hugo Mestre Amaro como Dâmaso Salcede, perante a discrição de João Perry como Afonso ou a presença física de Maria João Pinho na Gouvarinho. É um problema que se sente mais na “versão curta” de 2h20 (que terá estreia comercial na maioria das salas), mais ancorada no romance entre Carlos e Maria Eduarda, “aparada” por Botelho da montagem final de três horas (que estreia com uma cópia em Lisboa e entrará em digressão pelo país), que sublinha a dimensão satírica e política do romance permitindo um maior equilíbrio narrativo.

É nessa diferença entre as versões que encontramos a chave da leitura de Botelho: sem serem significativamente diferentes em termos de estrutura e construção, são igualmente válidas e igualmente fiéis ao espírito dos Maias. Mérito do romance, sem dúvida, mas também de um realizador que não se deixou assustar por ele. Ainda assim, fica a sensação que a “compactação” do romance para uma duração “viável” em sala, somada à construção do filme por quadros, acaba por tornar Os Maias mais numa sequência de episódios do que numa narrativa coesa e contínua, e que a própria aposta de Botelho na dimensão de comédia de costumes sobre o “Portugal dos pequeninos” pode ter contribuído para a menorização da história de amor. O que, na verdade, não é um problema perante um filme que ganha em ser visto mais do que uma vez - e, preferencialmente, na versão longa – e que faz ao livro de Eça a justiça devida.

 

Sugerir correcção
Ler 1 comentários