Quando um hospital renasce pela arte, é uma “cidade” que se levanta

Alexandre Allard quer transformar o antigo hospital Matarazzo num espaço-símbolo de São Paulo. Antes da reabilitação, o complexo é aberto para uma exposição heterodoxa. E efémera.

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Os santos na instalação de Rodrigo Bueno “roubados” a Joana Vasconcelos João Sal/Cidade Matarazzo
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O hospital fotografado em 1906. dr
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Alexandre Allard Mondino
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Arne Quinze, Alex Allard e Marta Suplicy

Há duas décadas que ali não nasce ninguém. O Hospital Matarazzo, como é popularmente conhecido, foi uma das principais maternidades de São Paulo ao longo de todo o século XX, mas estava fechado e devoluto desde meados dos anos 1990. A cidade quase esqueceu o complexo de edifícios que fica a alguns minutos a pé da movimentadíssima Avenida Paulista.

Nesta terça-feira, a exposição Mady By… Feita Por Brasileiros devolve o hospital aos paulistas. É uma exposição temporária com 91 artistas, cerca de metade dos quais estrangeiros. Alguns dos mais importantes nomes da arte contemporânea estão presentes e há um diálogo de fundo a acontecer com a cultura de vários pontos do Brasil. Mas vamos começar pelo início.

O projecto é de Alexandre Allard e é muito mais ambicioso do que uma mera exposição. É uma lança no futuro. O entusiasmo com que o empresário francês fala da Cidade Matarazzo, como passa a designar-se o conjunto de edifícios centenários que será reabilitado após a mostra, é contagiante. Allard quer fazer dele uma referência turística e uma resposta à procura da nova classe média brasileira, sobretudo dos seus jovens adultos. Para o francês, o futuro é agora.

“A ideia do projecto é simples. São Paulo é quinta maior cidade do mundo. É a única capital [cultural] que não tem um marco turístico. Se eu disser Nova Iorque, fechas os olhas e vês 20 sítios; se disser Paris, fechas os olhos e vês cem; se disser Rio de Janeiro, vês 20… se disser qualquer uma, existem imagens [mentais para elas]. Mesmo para cidades pequenas como Lisboa. Se disser São Paulo, ainda que vivas aqui há 20 anos, não te surge nada”, explica ao PÚBLICO.

Allard é um sedutor. Está sempre disponível. Pára para falar com toda a gente. Nunca deixa de sorrir. Nunca esmorece a excitação com que discorre sobre o Brasil, São Paulo e a Matarazzo. Como sabe que está a ser entrevistado para um jornal português, leva-nos para o seu lado com uma divisão subtil entre nós e eles: “De onde vimos, a Europa, sabemos que estes edifícios comunicam com as pessoas, que têm valor. Mais importante, que a história tem valor.”

História é o que não falta ao antigo hospital, onde nasceu cerca de meio milhão de pessoas (e muitas morreram também). O nome oficial era Umberto I, em homenagem ao rei italiano que morreu em 1900, quatro anos antes de ali serem atendidos os primeiros pacientes, na Bela Vista paulistana. Não por acaso: o mecenas, Francesco Matarazzo, tinha pretensões nobiliárquicas e valia-se da sua bolsa milionária para o conseguir. Tinha feito fortuna no Brasil, para onde havia emigrado aos 27 anos – em 1937, quando morreu, era o mais rico do país.

O italiano fazia contribuições avultadas para o reino e os seus filhos e filhas começaram a desposar membros da alta nobreza europeia. Estas famílias, por sua vez, pretendiam que não houvesse plebeus entre os seus e exerciam pressão sobre o rei Vítor Emanuel III, para que concedesse um título a Matarazzo. Em 1917, dado o peso da Grande Guerra, o monarca cedeu: pediu uma contribuição de milhões de dólares ao industrial e concedeu-lhe o título de conde.

Quando Allard diz que o Brasil está a regressar à sua história, é também dos próprios Matarazzo que está a falar. A família desempenhou um relevante papel na vida pública do século passado. As artes em particular têm a agradecer a Ciccillo Matarazzo, sobrinho do patriarca, a fundação da Bienal de São Paulo em 1951 (e à sua companheira de então, a “princesinha do café” Yolanda Penteado). E é também por isso que o destino do hospital, de resto um edifício “tombado” (património classificado), gerou algumas preocupações.

“Temos estado a trabalhar há sete anos com a administração brasileira, que está muito contente. Toda a gente está entusiasmada. Não acho que exista um projecto que gere tanta unanimidade na cidade. É a primeira vez que alguém no Brasil consegue salvar um complexo patrimonial como este. É a maior reabilitação da história deste país”, responde Allard.

Chega de saudade
O projecto prevê a reabilitação do corpo principal de edifícios, aumentando alguns, e a demolição de construções mais recentes. Aí será construída uma torre comercial assinada pelo arquitecto francês Jean Nouvel. Para o edificado classificado está projectado um hotel de luxo, uma zona comercial e um centro cultural com cinemas, teatro e espaço para exposições. Essa parte da obra será dirigida por Philippe Starck. “Vão surpreender-se. Vai mudar a cara de São Paulo”, disse o designer francês à revista Casa e Jardim, do grupo Globo.

O hospital foi adquirido pelo Groupe Allard em 2011 por 117,5 milhões de reais (91,1 milhões de euros ao câmbio actual). No início deste ano, a chinesa CTF pagou 165 milhões de reais por 35% do capital da Cidade Matarazzo. A exposição, que é de entrada gratuita, foi co-financiada por vários patrocinadores. Segundo Allard, os artistas não recebem qualquer quantia.

O processo vai demorar anos até estar concluído. Mas, tal como tinha feito em 2008 com a demolition party do Hotel Royal Monceau, em Paris, Allard organizou um adeus condigno às ruínas antes de a restauração começar. O que fez desta vez foi a exposição Made by… Feita por brasileiros, que permite aos paulistas visitar o antigo hospital até 12 de Outubro. O título, apesar dos muitos nomes estrangeiros presentes na mostra, deve-se ao livro que Alexandre Allard e Marc Pottier produziram para a colecção Made by da Galeria Enrico Navarra.

O livro traça, ao longo de três volumes e em cerca de 1200 páginas, o panorama da arte brasileira, fruto de dois anos de viagens e investigação por todo o país, entrevistando artistas, coleccionadores, críticos e outros trabalhadores do sector. E muito desse trabalho transpira para a mostra na Matarazzo, onde se encontram peças canónicas como Baba Antropofágica, de Lygia Clark – logo a abrir – e artistas incontornáveis do Brasil – Tunga, Vik Muniz, Carlito Carvalhosa, Iran do Espírito Santo –, mas também nomes menos reconhecíveis.

A grande maioria das obras foi realizada no hospital com materiais que ali se encontravam. E, à excepção da videoarte e de algumas peças emprestadas, todas as intervenções desaparecerão com início das obras. “É um projecto bem especial num lugar totalmente excepcional”, qualificou o curador Marc Pottier, na terça-feira passada, na apresentação do projecto à imprensa, que culminou numa actuação de Fafá de Belém vestida em crochet por Joana Vasconcelos.

A portuguesa é uma das artistas internacionais com maior preponderância – a capela ficou integralmente por sua conta. Valquíria Matarazzo, peça inédita, ocupa todo o antigo espaço de culto, ao qual Joana Vasconcelos teve de comprar três santos, para que não faltassem os representantes religiosos da portugalidade. “A capela tinha mais santos, mas houve outro artista [Rodrigo Bueno] que me ‘roubou’ os santos. O que criou um grande problema, porque fiquei sem Santo António, sem São Pedro e sem Fátima. Tentámos trocar os santos, mas ele disse que não, porque já tinha feito a sua instalação”, contou ao PÚBLICO.

A artista explica que quis devolver “alguma vida” à capela com a sua obra, que será das poucas a escapar à destruição. “O local estava desabitado e, portanto, resolvi inspirar-me no espaço, nas suas cores, no seu ambiente, e tentar criar uma peça que tivesse uma serenidade, que desse uma sensação de paz, e que de alguma maneira voltasse a dar vida a este local.”

Este tipo de explicações, ou quaisquer outras, não estão disponíveis junto das obras. Apenas no site da exposição. Sem elas, é possível construir significados para as estalagmites de entulho de Cecile Beau, para o espelho negro de Per Barclay ou para a inundação de Artur Lescher, que tem a seu lado um outro português presente na mostra – Miguel Palma. O artista fez uma escultura para uma divisão onde funcionava um restaurante muito apreciado pelas comidas condimentadas que o cozinheiro português da época preparava para os seus clientes.

Álvaro García de Zúñiga, uruguaio com nacionalidade portuguesa que morreu em Abril, completa o triângulo nacional que se pode ver na Matarazzo. Uma das frases do escritor e encenador inscritas na parede parece mesmo desafiar Allard: “Havia mais futuro no passado.”

Mas o francês não se deixa abater. “Desde há 100 anos, as pessoas dizem que o Brasil é o país do futuro. Acho que é agora. O que está a acontecer precisamente agora é o ponto de viragem que toda a gente tem estado à espera. A principal razão é que este país está a construir uma classe média há 20 anos e os filhos dessa classe média, que têm 20 a 30 anos, tiveram acesso a boas escolas e a boa educação”, diz Allard. “Estas pessoas vão mudar o país.” 

O jornalista viajou a convite do Groupe Allard

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