Putin está a vencer mas pode estar a cometer um erro histórico

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1. O mundo é um lugar perigoso e imprevisível – diz um lugar comum jornalístico, particulamente verdadeiro em 2014. Em Janeiro, ninguém ousaria prever a escalada russa na Ucrânia nem a ofensiva — e o grau de barbárie — do Estado Islâmico [EI] na Síria e no Iraque. Ambos os conflitos estiveram na ordem de trabalhos da Cimeira da NATO em Cardiff. Concentram as atenções e obscurecem outras crises, com a da Líbia, que se desintegra e cria uma nova ameaça no Mediterrâneo, ou as tensões no Mar da China do Sul, seguramente as de mais perigoso potencial no futuro.

Por que razão começar assim um comentário sobre a Ucrânia? Porque a “cascata de crises” a que assistimos este ano atinge com violência o sistema internacional e põe em causa aquilo a que chamamos a “ordem mundial do pós-Guerra Fria”. Uma ordem que, segundo muitos analistas, já está em coma. A intervenção russa na Ucrânia é a mais recente prova. A era das “ordens mundiais” desenhadas sobre conceitos ocidentais está a terminar – é a tese do livro que Henry Kissinger publicará na próxima semana (World Order). Falar da Rússia, da Ucrânia e da Europa exige que tenhamos presente aquela “cascata”. É errado abordar estes conflitos isoladamente porque se influenciam uns aos outros.

“A cascata de crises internacionais tem múltiplas implicações sobre os Estados Unidos e o mundo”, diz o analista Thomas Carothers, do think tank Carnegie. “Primeiro, a potência americana está constantemente a ser testada por actores emergentes que procuram determinar a capacidade e a vontade dos EUA para manter a ordem. Segundo, a ideia de pivot para a Ásia teve certa atracção” mas está a ser posta em causa pelo regresso americano ao turbilhão do Médio Oriente. E, no Médio Oriente, segue-se com atenção a atitude americana na Ucrânia.

2. Não se trata apenas de um conflito entre russos e ucranianos. É também uma prova de força entre Rússia e Europa e, ainda, um teste à NATO e aos EUA. Proclamou-se, algo enfaticamente em Cardiff: “É a crise mais grave na Europa desde o fim da II Guerra Mundial.”

Ao anexar militarmente a Crimeia, Vladimir Putin violou o princípio da integridade territorial dos Estados europeus consagrado na acta final da Conferência de Helsínquia, em 1975. Rompeu as parcerias com a Europa e a NATO e prepara-se para denunciar alguns acordos com os EUA. Argumenta Putin que todos estes acordos foram negociados quando Moscovo estava numa posição de fraqueza. A sua política, anunciada em Munique em 2007, visa anular a “ordem pós-Guerra Fria”.

Putin sabe que a força militar russa não tem comparação com a dos Estados Unidos. A invocação do seu arsenal nuclear é uma gesticulação guerreira de propaganda. Mas dispõe de vantagens consideráveis: tem um “interesse vital” na Ucrânia e muito mais a perder do que os ocidentais; em segundo lugar, as suas tropas estão “perto” e as da NATO “longe”. Por fim, a Rússia tem um chefe que pode tomar decisões imediatas, o que lhe dá uma vantagem táctica perante os 28 da UE. Na Ucrânia, Moscovo parece sempre um passo à frente dos ocidentais, tem tido a iniciativa. Putin não quer anexar a Ucrânia. Quer uma Ucrânia fraca, dividida e corrupta — logo dependente. Sem Kiev, o seu projecto da União Euro-Asiática não tem sentido.

O Kremlin tem outro desígnio, mais largo. “Os dirigentes russos prosseguem uma velha ideia que remonta aos tempos soviéticos: uma nova arquitectura de segurança na “grande Europa”, escreve o analista francês Daniel Vernet. “Sob esta forma diplomática esconde-se a vontade de ser parte integrante das decisões ocidentais em matéria de segurança, da defesa e da organização do Continente, incluindo a definição das esferas de influência.” 

O problema é que, apesar da extensão geográfica, da capacidade militar e da utilização da arma do gás, a Rússia não tem os meios necessários para tal ambição. É um país em catastrófico declínio demográfico, com uma economia dependente do gás e petróleo e que entrou em estagnação. Precisa de investimentos e tecnologias ocidentais. Resiste às actuais sanções porque elas produzem efeito a médio prazo.

Enfim: a Rússia não tem aliados permanentes. Prefere súbditos. É uma miragem contar com a China. Joga na divisão da UE e aposta na dificuldade de uma política energética comum europeia.

3. O governo ucraniano e os rebeldes “pró-russos” (leia-se russos) assinaram uma trégua que congelará a situação no terreno. No entanto, cada momento de “desescalada” ou cada trégua não devem ser tomados como a aproximação do fim do conflito. São uma pausa enquanto os actores, internos e externos, continuam a mover as suas pedras. Moscovo não abdicará dos seus objectivos. As tréguas são quase inevitavelmente feitas nas condições impostas por Moscovo. “A triste realidade é que Vladimir Putin está a vencer na Ucrânia”, escrevia ontem o The Economist.

A cimeira de Cardiff foi ambivalente. Os que esperavam uma atitude radical sobre a Ucrânia lamentam a “fraqueza europeia”. Os que se preocupam mais com a credibilidade da NATO aplaudem o “salto em frente” que consiste na criação da força de intervenção rápida para os países da Aliança vizinhos da Rússia. A NATO dá garantias de segurança aos seus membros da Europa Central e do Báltico, “reinventando a sua razão de ser”. À Ucrânia apenas promete ajuda e pressão sobre Moscovo. Kiev optou por assinar o cessar-fogo. “Encorajar Kiev a procurar uma vitória militar só poderia conduzir a uma inevitável derrota”, escreve no New York Times o britânico Anatol Lieven.

Até agora, a crise ucraniana tem sido marcada por factos consumados impostos pela Rússia e por erros de cálculo de todas as partes: da Europa, de Moscovo e de Kiev. Estes erros de cálculo são o aspecto mais perigoso da situação, arriscando-se a provocar novos desastres. Outro factor inquietante é Putin ter jogado todo o seu prestígio, e o da Rússia, numa “vitória” na Ucrânia. Está refém do nacionalismo russo.

4. O conflito, tudo o indica, vai ser longo. Com a anexação da Crimeia e a “invasão clandestina” do Donbass, “a Rússia perdeu a Ucrânia”. A situação política actual é completamente diferente da de Fevereiro. Por outro lado — e volto ao início — a Ucrânia faz parte da “cascata de crises” que se influenciam entre si, numa prova de força que a excede.

Há muitos cenários, alguns até inimagináveis. Se não houver um acordo sobre a soberania e a neutralidade da Ucrânia e Moscovo impuser o seu modelo de federalização, a unidade da Ucrânia pode estar condenada a prazo. A Rússia não quer separar o Donbass da Ucrânia mas utilizá-lo para controlar Kiev. Mas também “o resto dos ucranianos” pode um dia decidir separar-do Donbass, o que abriria caminho à sua ancoragem na Europa. A acontecer, Putin teria cometido o maior erro estratégico da Rússia pós-comunista.

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