Rússia testa vontade da NATO de se reinventar

Vários líderes europeus, com destaque para Angela Merkel, têm mantido uma posição de força, mas alguns analistas questionam a determinação da Aliança Atlântica para enfrentar Moscovo.

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A cimeira da NATO vai decorrer no País de Gales na quinta e sexta-feira LEON NEAL/AFP

A aproximação entre a NATO e a Rússia após o colapso da União Soviética sempre foi mais um desejo do que uma certeza à espera de uma boa oportunidade, mas a crise na Ucrânia atirou as relações para o nível mais preocupante do período pós-Guerra Fria.

Ao longo das duas últimas décadas houve muitos altos e baixos, mas nunca o precipício tinha ficado tão perto que levasse os cidadãos do centro e do sul da Europa a pensarem, por um segundo que fosse, que a sua vida podia mudar radicalmente de um momento para o outro.

De Washington a Berlim, passando por Londres e Paris, é notório o cuidado para se transmitir a ideia de que essa ameaça não é real, e que a crise na Ucrânia só poderá ser resolvida pela via política. Mas as imagens de ucranianos a escavarem trincheiras às portas de Mariupol, no Sudeste do país, contam uma história ligeiramente diferente do quadro de referências a que a maioria dos europeus se habituou nas últimas décadas.

Apesar da intensa guerra de propaganda que está a ser travada entre Kiev e Moscovo, que cada um interpreta à luz das suas convicções, é inegável que a NATO foi apanhada de surpresa pela dimensão que a crise na Ucrânia atingiu depois da deposição do antigo Presidente Viktor Ianukovich, em Fevereiro.

Apenas um mês antes, o secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, escrevera na rede social Twitter que tinha mantido "conversações construtivas" com uma delegação russa, em Bruxelas, acompanhando as suas palavras com uma fotografia em que aparecia a cumprimentar efusivamente o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov.

Recuando mais um pouco, até Novembro de 2010, as relações entre a NATO e a Rússia pareciam ter atingido o ponto mais alto da sua história, com Lisboa como pano de fundo. Lendo agora as palavras proferidas pelos principais líderes mundiais, a cimeira de Lisboa parecia ser a tal boa oportunidade para que o desejo de aproximação passasse a ser uma certeza.

Aquilo que a NATO tinha para oferecer à Rússia há apenas quatro anos era uma "verdadeira parceria", disse então o secretário-geral, Anders Fogh Rasmussen. A seu lado, o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarava que a tensão entre a NATO e a Rússia tinha sido transformada "numa fonte de cooperação".

O então Presidente russo, Dmitri Medvedev, alinhou no coro de esperança: "Constatámos que o período de relações frias terminou. Olhamos para o futuro com optimismo e tentamos fomentar as relações entre a Rússia e a NATO em todos os campos."

Para trás ficara a intervenção da Rússia na Geórgia, em 2008, onde duas repúblicas separatistas se transformaram em conflitos congelados – a Ossétia do Sul e a Abkházia. A condenação da acção russa ainda surgia na declaração final da cimeira de Lisboa, mas não foi suficiente para ofuscar o "enorme sucesso" da reunião.

Quase quatro anos depois, os membros da NATO voltam a reunir-se numa cimeira de importância vital, mas por motivos bem diferentes – mais do que acertar o passo em relação a uma resposta à Rússia, a Aliança Atlântica quer aproveitar a reunião de dois dias no País de Gales para se "reinventar", como escreveu o especialista em questões de defesa do jornal britânico The Guardian, Ewen MacAskill.

"Os generais da NATO têm boas razões para estarem gratos a Vladimir Putin. As acções da Rússia na Ucrânia deram à moribunda e pesada organização uma oportunidade para se reinventar, depois de lutar para encontrar um papel para os seus 28 membros desde o fim da Guerra Fria", escreveu MacAskill.

"A grande questão", continua o especialista, é saber "se a NATO vai agarrar essa oportunidade ou se vai continuar a resvalar para a irrelevância".

Posto de outra forma: estarão os membros da NATO verdadeiramente interessados em reinventar a organização, enviando um forte sinal a Moscovo que se traduzirá, ao mesmo tempo, em mais quilómetros de afastamento entre as duas partes?

Judy Dempsey, do influente think tank Carnegie Endowment for International Peace, tem dúvidas de que a cimeira no País de Gales marque uma revolução nas estruturas da organização, pelo menos no que diz respeito a países como a Ucrânia, a Geórgia e a Moldova, que desejam aderir à NATO e à União Europeia contra a vontade da Rússia.

"É claro que a NATO pode treinar e dar assistência técnica a esses países, para que possam reformar a sua relação civil e militar, ajudá-los a cooperarem com a NATO e até a participarem, como foi o caso da Geórgia, na missão militar no Afeganistão. Mas não mais do que isso. O que Putin percebe perfeitamente é que a NATO não vai prestar assistência militar à Ucrânia, ainda que o país vá perdendo mais território para as forças apoiadas pelos russos", escreveu a analista no jornal The Moscow Times.

Tal como o assunto da Geórgia acabou por ser ultrapassado em dois anos, entre o conflito de 2008 e a cimeira de Lisboa de 2010, também a Ucrânia poderá vir a enfrentar o pragmatismo de vários líderes europeus, ainda que desta vez a situação pareça ser diferente.

Dempsey lembra os argumentos de Berlim e Paris contra a proposta de adesão da Geórgia e da Ucrânia à NATO, na cimeira de Bucareste, em Abril de 2008.

"A chanceler alemã, Angela Merkel, e o antigo Presidente francês, Nicolas Sarkozy, opuseram-se de forma determinada a essa ideia. Não queriam provocar a Rússia. Berlim e Paris colocaram, de forma não oficial, esta questão: 'no caso de a Geórgia e a Ucrânia aderirem à NATO, estariam os seus membros realmente preparados para os defender se fossem atacados pela Rússia?' A resposta então foi 'não', e essa resposta mantém-se hoje em dia", afirma a especialista.

A falta de confiança de alguns analistas na determinação da NATO em enfrentar a Rússia é tal que Ewen MacAskill contou no The Guardian uma piada sobre a criação de uma força de intervenção rápida com 4000 soldados, anunciada na segunda-feira por Anders Fogh Rasmussen para tranquilizar países como a Estónia, a Letónia, a Lituânia e a Polónia, que dizem temer uma intervenção russa nos seus territórios.

Essa força de carácter rotativo, que deverá ser aprovada na cimeira do País de Gales, está inserida no Plano de Acção de Prontidão (RAP, na sigla em inglês), mas o facto de contar apenas com 4000 efectivos levou os jornalistas presentes na conferência de imprensa de Rasmussen a questionarem a sua eficácia. Alguns deles, segundo o especialista do The Guardian, sugeriram  a representantes da NATO que o comandante dessa nova força seja conhecido como CRAP ("porcaria" em inglês).

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