É possível acabar com a hepatite C se preços dos novos fármacos baixarem

Em Portugal, há 12.637 doentes diagnosticados nos hospitais. Tratá-los com medicamento inovador ao preço pedido pelo laboratório, calcula o Infarmed, ficaria por mais de mil milhões de euros por ano. É mais do que se gasta com todos os fármacos nos hospitais.

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As dívidas dos utentes serão enviadas pelos hospitais e centros de saúde para a administração fiscal Nuno Ferreira Santos

Uma forma de pôr fim ao problema da hepatite C em Portugal é proposta pelo presidente do conselho de administração do Hospital de São João (Porto), António Ferreira, num artigo em que classifica como “verdadeiramente ´pornográficos` e incomportáveis para qualquer sistema de saúde” os preços a que os novos medicamentos antivirais são vendidos pela indústria farmacêutica.

Para este médico que administra um dos três maiores hospitais do país, Portugal devia iniciar um processo negocial para conseguir “um programa de tratamento, a concretizar em dez a 15 anos, a um custo médico nunca superior a dez mil euros por doente”,  substancialmente inferior ao preço actualmente pedido pelos laboratórios.

“Pela primeira vez, graças aos novos medicamentos, é possível tratar eficazmente a hepatite C”, lembra António Ferreira, num artigo esta quarta-feira publicado no Jornal de Notícias. Defendendo que se garanta o tratamento a todos os infectados, independentemente do estádio da doença, ao contrário do que está a ser feito em Portugal – actualmente apenas têm acesso aos novos fármacos os doentes em  risco de vida –,  António Ferreira considera que esta estratégia “serve os interesses da indústria farmacêutica”. Porquê? Este plano “não tem lógica em termos de saúde pública porque permite que o vírus continue a disseminar-se”, além de não ter “racionalidade em termos económicos”, explica.

O problema do tratamento da hepatite C tem estado em destaque desde que um novo medicamento produzido pelo laboratório norte-americano Gilead Sciences, o sofosbuvir, foi aprovado nos Estados Unidos. Mesmo nos EUA, onde há 3,2 milhões de infectados com o vírus, já está a ser posto em causa o valor acordado com o laboratório por 12 semanas de tratamento. O Comité de Finanças do Senado dos EUA, em carta enviada em Julho ao responsável máximo da empresa a que o PÚBLICO teve acesso,  reclama, aliás, um esclarecimento sobre a forma como a empresa chegou ao preço deste tratamento. Lembra, a propósito, que o medicamento foi vendido ao Egipto ao preço de 900 dólares e que foi igualmente feito um desconto de 44% no valor-base, nos EUA, aos detidos nas prisões que estão infectados com o vírus da hepatite C.

Em Portugal, segundo adiantou ao PÚBLICO uma fonte da Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed), há 12.637 doentes diagnosticados e caracterizados, de acordo com um levantamento feito recentementenos hospitais. Os especialistas calculam que 60% destes doentes precisam do dobro do tempo do tratamento standard (que é de 12 semanas). Nestes casos, o preço do tratamento sobe "de 48 mil para 96 mil euros", e é ainda necessária uma associação com outros fármacos que custam, em média, "30 mil euros". Fazendo as contas por baixo, contabiliza, tratar estes doentes ficaria assim por “mais de mil milhões de euros, mais do que todos os anos se gasta em todos os medicamentos a nível hospitalar”. 

É por isso que o processo negocial da comparticipação estatal do medicamento, que começou em Janeiro, se tem arrastado. Entretanto, o sofobusvir tem sido fornecido em último recurso nos casos mais graves, através das autorizações de utilização especial (AUE). Associações de doentes e médicos têm-se queixado de que há muitos doentes a aguardar pelo medicamento.“Este preços põem em causa os orçamentos dos estados”, justifica a fonte do Infarmed, que lembra que Portugal se associou com outros países europeus numa espécie de aliança, na tentativa de fazer com o laboratório baixe substancialmente o preço.

“O pedido de esclarecimento, do Senado dos EUA, sobre o preço do sofosbuvir é público e será respondido pela Gilead nos prazos legais estabelecidos”, respondeu a Gilead Sciences ao PÚBLICO. Relativamente ao acordo com o Egipto, o laboratório refere que este é o país mais afectado pela doença em todo o mundo, porque aqui “a prevalência da hepatite C crónica é de cerca de 15% da população (o que corresponde a 12 milhões de pessoas)”.

Quanto a Portugal, a Gilead nota que o país gasta “mais de 70 milhões de euros com as consequências da hepatite C” em cada ano e que, de acordo com os últimos estudos publicados sobre o impacto da doença, se espera "um aumento superior a 80% nos casos de cirrose descompensada, carcinoma hepatocelular e mortes e, consequentemente, um impacto cumulativo de 2,1 mil milhões de euros com estas complicações da hepatite C até 2030”.  Garantindo que leva em conta “os constrangimentos orçamentais que afectam Portugal”, a Gilead afirma que o sofosbuvir  “está neste momento comparticipado em oito  países europeus” (Alemanha, Dinamarca, Escócia, Eslovénia, Finlândia, Noruega, Suíça e Suécia) e “beneficia de programas de acesso precoce para os doentes em Espanha, França e Reino Unido” .

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