O que mostram as imagens dos prisioneiros de Donetsk cercados por baionetas arcaicas e telemóveis modernos

A exibição dos soldados ucranianos capturados pelas forças pró-russas pode não ter consequências jurídicas.

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Cerca de 80 soldados ucranianos, feitos prisioneiros pelos separatistas pró-russos, foram obrigados a desfilar nas ruas de Donetsk. Maxim Shemetov/Reuters
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Com as mãos atadas atrás das costas, uns envergavam uniforme militar, outros não. A humilhação visava, explica André Barata, professor de Filosofia, "acirrar o inimigo", em Kiev.
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No passeio de uma das principais avenidas de Donetsk, uma multidão assistia ao desfile dos prisioneiros, muitos filmando com telemóveis.
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Atrás dos prisioneiros, duas carrinhas de limpeza urbana lançavam jactos de água para o alcatrão, "limpando" as suas pegadas.
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Um repórter da estação televisisiva Life News, de camuflado e colete à prova de balas narrou o desfile. Para Sérgio Mah, professor de Ciências da Comunicação, todos o acontecimento "foi construído como uma imagem, um filme". O que é típico dos "discursos da propaganda".

No dia 24 de Agosto a Ucrânia celebrava 23 anos de independência. Não nesta cidade no Leste do país, controlada pelas forças pró-Rússia, capital da não reconhecida República Popular de Donetsk. Entre a Avenida Artem e a Praça Lenine, cerca de 80 soldados ucranianos são exibidos, mãos atrás das costas, a uma multidão que enche os passeios. A assistência grita “fascistas”. Muitos filmam a cena com telemóveis. Os prisioneiros estão guardados por homens de camuflado e baionetas. Atrás deste estranho cortejo, duas viaturas de limpeza urbana lançam jactos de água para o alcatrão.

Esta foi a cena que correu o mundo, ontem. Um acontecimento perturbador, incomum, quase anacrónico. Vários activistas de direitos humanos, e alguns juristas, alertaram para a violação das regras que, nas convenções internacionais, defendem o estatuto dos prisioneiros de guerra. No caso do conflito na Ucrânia, classificado pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha como um “conflito interno armado”, a Convenção de Genebra criminaliza o “atentado à dignidade humana” cometida sobre os prisioneiros. A vice-directora da Human Rights Watch, Rachel Denber, escreveu no twitter que a exibição nas ruas de Donetsk viola a proibição internacional de tratamento “degradante e humilhante” sobre os prisioneiros. Mas vários outros especialistas de direito internacional consideram ser muito difícil levar este caso à justiça.

Desde logo porque, adianta ao PÚBLICO José António Pinto Ribeiro, advogado, fundador do Fórum Justiça e Liberdades, a auto-denominada República Popular de Donetsk não é “um sujeito de direito internacional”. A Rússia e a Ucrânia não reconhecem a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. E tudo isso, prossegue Pinto Ribeiro, “impede uma discussão séria, jurídica, coerente, sobre este assunto”.

O ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, garantiu que a discussão jurídica pode prosseguir mas que não viu, naquelas imagens, “nada que remotamente se assemelhe a um abuso”.

No entanto, o desfile dos prisioneiros é construído “como um grande acontecimento visual”, explica Sérgio Mah, professor universitário, especialista em história da imagem. E essa é uma das características da propaganda. “De certeza que quem decidiu organizar esta parada sabia que ela ia ser transmitida”. Objectivo: “Replicar o olhar de um sujeito comum, reforçar um discurso prévio." Esta é, continua Mah, uma repetição de algo que já vimos, “no século XX”. “Trágica”, sublinha.  

André Barata, professor de Filosofia na Universidade da Beira Interior, considera que há  nesta exibição um “preço elevado”: “Acirrar o inimigo pelo humilhação dos seus é pôr o ódio à sua identidade como fundamento de uma guerra. Deixa de ser um conflito de interesses, um desentendimento de posições, que poderiam ser negociados, intermediados, resolvidos a contento de ambas as partes, para passar a ser um conflito de identidades que apenas se resolve, na convicção de ambas as partes, pela eliminação ou expulsão da outra parte.”

A forma como tudo isto foi feito, em Donetsk, parece curto-circuitar o próprio tempo. Uma imagem obsoleta revestida de modernidade, explica André Barata: “Completa-se assim o espectáculo de forma sinistra, usando o objecto mais pós-moderno e mais familiar do quotidiano das pessoas – o seu telemóvel pessoal – para registar, como para memória futura, a rejeição mais anti-moderna do outro – lavar o chão que ele pisou como se ele fosse o mal em pessoa. Parece um paradoxo mas não é.”

Até porque toda esta cena pode ser – de forma explícita, ou não – uma espécie de recriação. Estaline organizou uma parada semelhante, com prisioneiros de guerra alemães, em 1944, nas ruas de Moscovo. Também ali foram usados jactos de água para “limpar” as pegadas dos adversários.

Se o desfile procurava ser uma batalha na guerra “psicológica”, José António Pinto Ribeiro duvida da eficácia: “Os que são mostrados sofrem, os que mostram os que são mostrados sofrem também.” No fundo, continua o advogado, em Donetsk, na Ucrânia, vive-se mais um episódio da “História que nos últimos 800 anos marcou a Europa”. A formação de Estados nacionais.

A unificação, ou a desagregação, dos Estados já “gerou duas guerras mundiais”, nos últimos 100 anos, prossegue Pinto Ribeiro. E pouco se aprendeu, entretanto… “Se este é um movimento inexorável, porque não o fazemos pacificamente? A Jugoslávia não serviu para aprendermos nada?”, questiona.

Sérgio Mah também usa a Jugoslávia como termo de comparação com as imagens de Donetsk. A mesma “violência” que é exibida pelas “fotografias dos judeus a serem presos, ou as imagens da guerra dos Balcãs”.

Mais uma vez, o passado ressurge: “A memória fica guardada no telemóvel, são fotografias de humilhação a serem provavelmente partilhadas nas redes sociais, como imagens de culto deste nosso tempo”, conclui André Barata.
 

   

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