O Curdistão é uma enorme “sala de espera” cheia de gente que aguarda um futuro

Ninguém sabe quantos cristãos, yazidis ou turcomanos xiitas iraquianos morreram desde Junho. Como nunca ninguém saberá quantos sírios morreram desde 2011.

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Deslocados yazidis num campo de refugiados no Curdistão Youssef Boudlal/REUTERS

Já explodem bombas em Erbil, a capital do Curdistão iraquiano, que os curdos governam no Norte do Iraque. No último ano e meio, foi para aqui que fugiram dezenas de milhares de membros de minorias étnicas e religiosas cujas aldeias, vilas e cidades foram atacadas por jihadistas na Síria. Nos últimos meses é aqui que têm chegado os que conseguem fugir das cidades, vilas e aldeias iraquianas que os mesmos jihadistas decidiram conquistar.

Muitos (cristãos, turcomanos) já tinham abandonado Bagdad nos anos da guerra civil e dos atentados diários contra tudo e contra todos (2006-2008). Na altura, pararam em Mossul, a segunda cidade mais importante do país, capital do Norte, em Kirkuk, cidade multi-étnica, uma espécie de retrato fiel do Iraque na representação de maiorias e minorias (estão lá todos), ou no campo. Agora, se podem, chegam ao Curdistão.

Os yazidis, uns 800 mil em todo o mundo, sofreram em 2007 o maior atentado da guerra que começou com a invasão de 2003 para nunca mais acabar — 800 a 1000 mortos em aldeias perto de Sinjar. Já não se lembram de existir sem serem perseguidos e agora são enterrados vivos, decapitados, escravizados.

Há gente que ainda ontem fugiu do Curdistão sírio para o iraquiano e que agora faz o percurso inverso.

Desde que o Estado Islâmico começou a atacar no Norte do Iraque, em Junho, nasceram centros e campos de refugiados improvisados por todo o Curdistão iraquiano. Paróquias, santuários, escolas, centros comerciais, condomínios por vender.

Os cristãos concentram-se em Ankawa, espécie de vila dentro de Erbil onde os cristãos caldeus estão em maioria; há uma semana estavam lá 70 mil, espalhados por 22 centros. Também há muita gente em Dohuk (pelo menos 60 mil), uma das três províncias que formam o Curdistão dos iraquianos, a ocidente.

Os yazidis procuraram refúgio em Lalish, Dohuk, o local onde estes curdos (os primeiros, dizem falar o curdo original) com uma fé pré-islâmica acreditam que a vida recomeçou depois da grande inundação. É “talvez a primeira religião a ser declarada em toda a região”, explicava em 2010 ao PÚBLICO o Baba Sheikh, líder espiritual dos yazidis.

O puzzle e a implosão
O Iraque é uma espécie de milagre sem sentido, puzzle mágico criado entre o acaso e a estupidez dos outros. Durante décadas, houve uma ditadura árabe sunita que oprimia o maior grupo religioso (árabes xiitas) e ia acomodando as minorias (expulsando os curdos de onde havia recursos com políticas de arabização ou nomeando um cristão ministro dos Negócios Estrangeiros — Tariq Aziz era católico e estava no topo do regime de Saddam). Depois, veio a invasão norte-americana e começou a desintegração do puzzle. Os jihadistas do Estado Islâmico ameaçam dar o golpe final e arrasar várias culturas únicas no mundo que faziam do Iraque o que o Iraque já foi, por menos país que alguma vez tenha sido.

“O Curdistão parece uma enorme sala de espera. Quem veio chegou com a roupa do corpo e agora está ali, à espera que alguém lhes dê uma solução”, descreve Maria Lozano, jornalista da fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que regressou há uma semana da região. “Se a comunidade internacional não consegue dar a estas minorias o direito a viverem no seu país, uma hipótese de futuro, então nem percebo de que direitos internacionais é que podemos falar.”

Oficialmente, os norte-americanos nunca contaram os mortos iraquianos. Há equipas médicas que aplicaram métodos científicos e publicaram artigos em revistas especializadas. Mas ninguém sabe quantos iraquianos foram mortos na guerra entre 2003 e 2011, quando os Estados Unidos retiraram. Podem ter sido 300 mil, 800 mil, um milhão.

Ninguém sabe quantos cristãos, yazidis, turcomanos xiitas ou árabes sunitas que se opuseram à barbárie dos radicais estrangeiros morreram desde Junho no Iraque. Quantos fugiram, quantos existiam antes. Há estimativas, não factos. Ninguém sabe quantos sírios morreram desde que alguns saíram à rua contra Bashar al-Assad: centenas de milhares, às mãos da ditadura ou dos jihadistas que viram na repressão de Assad e na guerra que esta originou uma oportunidade para recomeçar a erguer o califado que a Al-Qaeda sempre teve nos seus planos, desde que Osama bin Laden a fundou na fronteira do Paquistão com o Afeganistão, em 1988.

Em Ankawa, os cristãos sempre se sentiram seguros. Os curdos não os atacavam, os ataques terroristas não chegavam lá. Os yazidis também. O problema é que os curdos não controlavam a segurança em todas as zonas onde os yazidis viviam e então morreram centenas num ataque em Agosto, há sete anos. Os curdos fazem o que podem — e agora os norte-americanos atacam os jihadistas pelo ar — mas as minorias do Iraque ou qualquer iraquiano que queria viver em paz sente ter cada vez menos lugares para onde fugir.

Agora, chovem bombas e alimentos e medicamentos do céu. As primeiras têm como alvo as posições dos jihadistas. Os segundos são a única forma de levar ajuda até gente que está encurralada nas montanhas ou cercada nas suas aldeias, como os 20 mil habitantes de Amerli, terra de agricultores, turcomanos (turcófonos) de confissão xiita, cercada por jihadistas.

O Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) lançou nos últimos dias uma gigantesca operação para levar tendas, cobertores, comida e água a 500 mil deslocados no Iraque. Na quinta-feira à noite, o segundo Boeing 747 aterrou em Erbil, enquanto 16 contentores partiam do Dubai para o Irão, de onde seguiram em camiões para a capital do Curdistão iraquiano. Ao todos, são 2410 toneladas de ajuda que esta agência da ONU quer distribuir por ar, terra e mar em dez dias.

Nunca houve tantos refugiados no mundo desde a Segunda Guerra (mais de 51 milhões registados). No Iraque, o número vai continuar a aumentar — estes são os que têm sorte, os que conseguem chegar a algum lado onde não os queiram dizimar, nem que seja um dos parques de Erbil onde Maria Lozano encontrou dezenas de famílias, avós e netos, gente saudável e doente, a viver ao ar livre, 45 graus de dia e noites frescas.

Aldeias inteiras
Pelas estradas do Curdistão, Lozano viu gente que outra gente deixou instalar-se nos seus quintais ou 77 famílias de uma mesma aldeia que tinham fugido juntas. Toda a gente dá o que tem mas há muita gente a chegar sem nada em muito pouco tempo. No Curdistão o que ainda não há são jihadistas vestidos de negro, mas os radicais querem lá chegar.

Ontem houve bombas em muitas cidades do Iraque, mas o carro armadilhado que explodiu em Erbil foi o atentado mais surpreendente. Afinal, o Curdistão tem como slogan “O Outro Iraque”, um exército próprio (os peshmerga), electricidade e água e nos últimos 11 anos teve um desenvolvimento que deixou a região a anos-luz do resto do país. Em todo esse tempo, só um grande atentado a assinalar: 60 curdos mortos por um bombista suicida, 5 de Maio de 2005.

Lozano visitou o Curdistão no Verão mas já teme o terror do Inverno. Lembra os estudantes que deixaram de ir à escola e conta como tantos cristãos lhe disseram que nunca voltarão às suas terras sem garantias de protecção.

Na Síria, mais de nove milhões de pessoas fugiram para salvar a vida desde Março de 2011. Há milhões de refugiados dentro e fora do país. E centenas de pessoas continuam a ser mortas todos os dias.

Em Setembro do ano passado, Abdallah Shemour, yazidi de Tal Asser, uma vila na província síria de Alepo, acabou num campo de refugiados nos arredores de Afrin, cidade da mesma província mas numa zona sob controlo de um partido curdo da Síria. “Vim para salvar o meu filho”, dizia, um mês depois, quando o PÚBLICOU o conheceu. O filho chama-se Zardash, um nome tão yazidi que não engana ninguém.

Quando os jihadistas entraram em Tal Asser “foram casa a casa e exigiram: o vosso dinheiro, as vossas mulheres, as vossas casas”. Os que tentaram chamá-los à razão foram mortos à medida que o faziam. “Horas depois de entrarem, juntaram os corpos na rua. Continuam a matar gente, todos os dias”, contava Abdallah, que ainda tinha irmãs em Tal Asser.

Por esses dias, os jihadistas atingiam Afrin com os primeiros rockets e muitos dos que ali tinham chegado em fuga de Alepo ou de outras zonas da Síria já planeavam nova fuga, para a Turquia, para o Iraque, para a Europa, para onde fosse possível. Ali, onde nunca chegou nenhuma ajuda internacional, já começava a ser difícil imaginar onde poderia haver segurança. Os possíveis refúgios ainda não pararam de diminuir.     

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