Tarefas impossíveis e o poder da palavra “decapitado”

O silêncio pode ser a melhor arma mas quando jihadistas ou ditaduras capturam jornalistas estrangeiros não há garantias.

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James Foley foi morto no Iraque NICOLE TUNG/AFP

Um café frequentado por turcos que gostam de lattes, refugiados sírios que já viveram bem e por três ou quatro jornalistas ocidentais que, em Outubro de 2013, andavam por Antakya, no Sul da Turquia, a tentar entrar na Síria. “Tu vais dizer-me tudo o que não disseste aos outros. Ouviste? Chega de mentiras e de meias verdades.” A voz é de um norte-americano, e nem é o boné ou a roupa, é mesmo o sotaque. “Tu” é um sírio feito refugiado que antes conduzia jornalistas na Síria, meio activismo meio modo de sobrevivência.

O norte-americano preparava-se para iniciar a tarefa em que serviços secretos de vários países tinham falhado: resgatar um amigo raptado na Síria. “Tu” tinha sido raptado com o amigo e não se sabe bem com mais quem, nem por que é que “tu” tinha sido libertado e o amigo do homem do boné não.

“Tu” estava nervoso, o norte-americano parecia disposto a tudo e “tu” não tinha as respostas que ele exigia, ali e agora. “Tu” saiu antes do homem do boné, depois de marcarem encontro na casa de uma família de refugiados sírios que podia saber mais qualquer coisa. “Tu vais aparecer, ouviste? E eles vão repetir tudo o que já disseram e contar tudo o que ainda não disseram. Eu não volto para casa sem ele.” Passado uns minutos, o norte-americano pagou a conta e abandonou a esplanada do café com vista para o rio Asi (“rebelde”, em árabe, sobe para norte em vez de descer para sul, vai do Líbano à Turquia, passando pela Síria).

Quando o rapto de James Foley foi divulgado, a 4 de Janeiro de 2013, já o norte-americano estava desaparecido há 44 dias. A família, que antes pedira silêncio aos media, não aguentou mais. A mãe, Diane, que nesta quarta-feira pediu aos jihadistas radicais que lhe mataram o filho para libertarem os outros raptados, “inocentes, como Jim”, admitia na altura não se saber quem tinha o filho. “Só sei que foi levado por homens armados com o seu condutor e o tradutor e que estes foram libertados”. Os Repórteres Sem Fronteiras diziam nesse dia que a Síria era “o triângulo das Bermudas dos jornalistas” e que era impossível saber quantos estavam (ou estão) desaparecidos.

No vídeo da decapitação de James Foley surge, vivo, Steven Sotloff – a Time confirma que se trata de um jornalista freelance que escreveu para a revista e que desapareceu em Agosto do ano passado. A Síria tem sido “triângulo das bermudas” e caixão. Segundo o Comité para a Protecção dos Jornalistas, há pelo menos 20 raptados ou desaparecidos neste momento, mais de 80 foram sequestrados e 69 foram mortos, incluindo sírios e estrangeiros, incluindo os que o regime de Bashar al-Assad bombardeou, como a nova-iorquina Marie Colvin, 30 anos de experiência, e o fotojornalista francês Rémi Ochlik, de 28 anos, enterrados em Homs em Fevereiro de 2012.

No caso dos raptos, muitas vezes não são noticiados, principalmente se há suspeitos de que o objectivo é um pedido de resgate. Assim, evita-se que o preço suba e que as negociações se compliquem. No caos sírio, também demora a perceber se os jornalistas foram levados pelo regime ou por grupos armados que se lhe opõem. O que não significa que os países e os media envolvidos não façam o que podem para obter a libertação de cada desaparecido. Na maioria dos casos, o público só é informado quando há um final feliz (Richard Engel, da NBC, por exemplo, que conseguiu fugir aos raptores na mesma zona onde Foley foi raptado) ou trágico, como a decapitação do norte-americano de 40 anos.

Na verdade, nunca se sabe e nada é garantia de nada. Foley, por exemplo, era mediático; sabia-se que estava desaparecido e que permaneceria na Síria. Para os radicais que controlam vastas áreas do Norte do país (e agora também do Norte e Ocidente do Iraque), fez sentido mantê-lo vivo até quererem que uma qualquer mensagem fosse ouvida com atenção. Ser norte-americano aumenta as probabilidades de se acabar morto (os Estados Unidos negoceiam mas não pagam resgates, tal como os britânicos, e ao contrário de outros países europeus).

Foi a propósito do Iraque, em 2003, que se concluiu que os jornalistas tinham passado a ser um alvo comum para as partes em confronto. Mas foi em Carachi, no Paquistão, a 1 de Fevereiro de 2002, que o norte-americano Daniel Pearl foi decapitado por Khalid Sheikh Mohammed, hoje em Guantánamo, onde admitiu esta morte e a responsabilidade “de A a Z pelo 11 de Setembro”. Na altura, Mariane Pearl, a mulher do jornalista, grávida de cinco meses, demorou a acreditar que ele estava morto. Afinal, ela e a amiga Asra Nomani lideravam por conta própria uma investigação séria, com a ajuda de alguns polícias paquistaneses, e julgavam que iam encontrar Daniel com vida. No fim, foi a ouvir a palavra “decapitado” que se convenceu.

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