Dez dias para deixar cair o corpo para fora dos medos

Provocar, mexer e dançar. Eis as palavras de ordem do IC - Interação e Conectividade que começa esta quinta-feira em São Salvador da Bahia, no Brasil. Lia Rodrigues abre o programa com Pindorama e depois será tempo de desejo e de tesão

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Tombé Alex Oliveira
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Pindorama Sammi Landweer
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Buraco Renato Mangolin
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Reproduction dr

Ao longo das últimas semanas a contagem decrescente para a oitava edição do IC – Interação e Conectividade 8 (IC8), que começa esta quinta-feira em São Salvador da Bahia, no Brasil, foi sendo feita sob o signo da provocação.

 “Não defina artigos e expanda as conjugações!” escrevia a organização nas redes sociais, defendendo dez dias de espectáculos, concertos, encontros, experiências e muita vontade de provocar aquilo que Jorge Alencar e Neto Machado, coreógrafos, bailarinos e programadores (e autores do filme Pinta, que passou este ano no IndieLisboa) definem numa só palavra: “desejo”.

Eles diriam tesão, porque tesão no Brasil, e sobretudo no nordeste, tem um lado de “mexer com as pessoas, de as fazer sair do lugar”, como diziam numa entrevista a uma rádio baiana na terça-feira. “Os tesões estão todos à flor da pele e não dá para esperar mais!” dizia uma outra frase de promoção de um festival que junta, numa cidade que parece um cartão-postal, concertos, lançamentos de livros, oficinas e seis espectáculos que começam por ser de dança e querem acabar numa imensa festa.

"A gente quer é quebrar essa ideia de que arte contemporânea, arte experimental é uma coisa impossível. Claro que é possível!", diz Jorge Alencar, que assina Tombé, o espectáculo que encerrará, a 30 de Agosto o IC8 esperando poder responder à questão que atravessa esta edição: “Como me apaixono no contacto com a arte?”

Ao longo de dez dias serão vários os espaços de Salvador que irão receber propostas que exploram relações de confiança e tentam aproximar o artistas e público sob "o signo da experimentação". Com o tema "arte, tesão e outras transas", o projecto tem como proposta pensar “o que move os seres humanos como pessoas e artistas”, explicam os programadores, falando do ponto comum que sustenta as várias escolhas desta edição: um desejo de encontro, de diálogo, de testar os modos de aproximação a um discurso que, muitas vezes, pode estar apenas à distância de uma desconfiança mal fundamentada.

Esta quinta-feira, quando os bailarinos de Lia Rodrigues mergulharem no silêncio de um movimento que faz de Pindorama o desenho possível de uma comunidade criada a partir da intimidade – tal como vimos já em Junho em Lisboa, na Culturgest, durante o Alkantara Festival, e no Porto, durante o Serralves em Festa, no Museu de Serralves – dar-se-á então início a uma viagem sensitiva e sensorial que procurará identificar, para depois derrubar, as frágeis barreiras que nos separam do outro.

Todos os dias, prometem, serão dias de encontro num festival que articula trabalhos que “são atiçados por certo tesão enquanto combustível, vibração, paixão, aventura”, dizem. Essa pulsão, explicam, “não [é] só sexual, mas erótica, de movimento e de vida”. “Somos todos clichés”, respondia Neto Machado ao programa Frequência Baiana da rádio BandaNews FM, de Salvador, usando o exemplo do espectáculo da húngara Eszter Salamon que irá remontar Reproduction, criação de 2004, com mulheres da região que, invertendo a habitual reprodução de uma gestualidade feminina, ensaiam um modo de compreender o corpo masculino transformando-se em drag kings.

O que distingue esta criação de Eszter Salamon (e que, de certo modo atravessa o seu percurso que passou timidamente em Portugal – apenas duas peças de um histórico singularíssimo onde se pode ler a história da Europa nas transformações do próprio corpo: em 2003 apresentou What a body you have, honey no ACARTE/Gulbenkian e, em 2009, Danças Húngaras no Festival Materiais Diversos -  é a sua capacidade para desafiar as convenções de género através de uma coreografia de filigrana e intuitiva.

Explicava Neto Machado que o IC8 quer “provocar o público e os artistas participantes, para que repensem as suas percepções e criem novas formas de fazer arte e de dialogar [com essa arte]”.

Talvez o melhor exemplo desse desejo de um novo diálogo esteja presente em Buraco, de Elisabete Finger, coreógrafa que se divide entre São Paulo e Berlim e que com este espectáculo pensado, em primeiro lugar para os mais novos, coloca a questão da percepção num nível que recusa a condescendência: “Um buraco é entendido aqui como uma relação: entre dentro e fora do corpo, entre diferentes corpos, entre diferentes materiais”. Do mesmo modo, espectáculos como Fole, de Michele Moura, Tira meu fôlego, de Elisa Ohtake, e Sobre Expectativas e Promessas, de Alejandro Ahmed são por isso promessas de uma dança em brasileiro que, concebendo uma relação com o corpo através de um questionamento intenso sobre a sua falibilidade, estabelece como princípio dialogante o desejo de pertença a uma outra hierarquia perceptiva.

Jorge Alencar e Neto Machado falam da vontade de romper com a ideia de que “a arte contemporânea e experimental é algo impossível” e que quando surge, parece vir “com um peso para te comer”. O IC – Interação e Conectividade completa-se com um ciclo de peças de teatro feitas por cineastas e um programa de rádio pensado como uma coreografia. Escreviam os programadores na sua página de Facebook no início da semana: “É muuuuita arte!... Muuuuito tesão!”

 Crítico de teatro e dança

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