Os caçadores da música asiática

Duas compilações-deslumbramentos fazem entrar graciosamente a música do Sudeste Asiático pelos nossos ouvidos. Dos sons perdidos de Longing for the Past à influência funk e jazz na Tailândia de The Sound of Siam 2. Demos graças aos garimpeiros.

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A compilação Longing for the Past é uma viagem do Laos à Indonésia em discos de 78 rotações

Ao romper de uma manhã de 1968, Keith Richards e Mick Jagger ouviram os passos pesados de umas botifarras que andavam para trás e para a frente junto à janela da divisão onde finalmente dormiam, depois de uma noite praticamente em claro e sob chuva persistente. Acordado pelo som das botas, recorda o guitarrista na sua monumental biografia Life, Jagger terá perguntado que raio de som era aquele. “Oh, that’s Jack. That’s Jumping Jack”, respondeu-lhe Richards, referindo-se a Jack Dyer, o seu jardineiro. O pequeno episódio seria recuperado pouco depois para a letra de Jumpin’ Jack Flash, um dos clássicos da carreira dos Rolling Stones, incluído originalmente em Beggars Banquet, o disco que assumidamente fizeram para se salvarem das desgraçadas vendas do fervente caldo psicadélico de Their Satanic Majesties Request.

Não terá sido certamente a pensar num jardineiro do Sussex que a maravilhosa cantora tailandesa Chaweewan Dumnern cantou o tema Sao Lam Plearn algures na década de 70, numa pop acrescentada de funk em lume brando, mas que usava o riff desacelerado de Jumpin’ Jack Flash como motivo principal. Em sentido inverso, podem facilmente citar-se os exemplos de Don’t phunk with my heart, dos Black Eyed Peas, decalcado duma canção da diva de Bollywood Asha Bhosle, ou Holdin on to black metal, que os My Morning Jacket assumidamente construíram a partir de uma pérola encontrada em Siamese Soul, compilação de pop tailandesa dos anos 60-80. Adiante: em 2011, Jagger daria conta num estado sobressaltado de entusiasmo, em entrevista ao LA Times, que acabara de descobrir numa rádio universitária uma bizarra versão (na verdade, nem versão é porque Dumnern não podia estar mais desinteressada em replicar as vocalizações do homem dos Stones) de Jumpin’ Jack Flash – os amigos tailandeses explicaram-lhe depois que não percebiam uma única palavra do que estava a ser cantado em lao. Correu então a comprar The Sound of Siam, a compilação “que um qualquer louco montou”, onde o tema se disseminava para ouvidos ocidentais.

Esse “qualquer louco” tem nome. Chris Menist viveu em Londres até 2006 e mudou-se com mulher e filhos para Banguecoque pouco depois, trocando a vida de percussionista pela de DJ na Tailândia, formando com Maft Sai a dupla responsável pelas festas quinzenais Paradise Bangkok, enquanto continua a desenvolver alguma actividade como jornalista freelancer. Mas tem sido o seu lado de coleccionador obsessivo de vinil a trazer-lhe reconhecimento no universo da música. O homem a quem a CNN chamou “o Indiana Jones da música popular tailandesa” ganhou protagonismo sobretudo pela edição, em 2011, de The Sound of Siam, cuja popularidade chegaria não apenas a Mick Jagger mas também à banda sonora do filme A Ressaca 2.

O interesse pela música asiática é apenas parcialmente uma decorrência da mudança de Menist para a Tailândia, segundo afirma ao Ípsilon: “Colecciono música a sério desde os 12 anos – para onde quer que vá procuro sempre discos, pelo que foi natural continuar a fazê-lo quando vim viver para fora.” Esse interesse na música asiática, e mesmo africana, já há muito o acompanhava. “Mas foi só quando me mudei para o Paquistão e depois para a Tailândia, por razões de trabalho, que comecei a pesquisar mais a fundo e tive subitamente um acesso muito maior à música e aos discos originais. Por sua vez, isto ajudou a construir uma imagem e um contexto para as várias cenas e os vários estilos.”

The Sound of Siam foi então composto a partir das investidas regulares de Menist na Chinatown de Banguecoque Saphan Lek, onde as lojas de discos continuam a empilhar preciosidades à espera de serem descobertas e valorizadas. Pouco depois, em viagem ao Iémen em busca de igual manancial de tesouros, haveria de recolher as bases para o álbum Qat, Coffee & Qambus, lançado em 2013 pela essencial Dust to Digital.

Oakland, Califórnia

O sucesso da primeira compilação de Sound of Siam, que reunia gravações de 1964 a 1975 de música local tocada pelo jazz, pelo funk, pelas guitarras surf e até pelos ritmos afro-latinos (designada localmente como luk krung ou luk thung), levou a novo volume acabado de lançar pela SoundwayThe Sound of Siam, Volume 2. O Sudeste Asiático é igualmente o foco de Longing for the Past, com mais alguns meses de vida e chegado com o selo da Dust to Digital. David Murray, responsável pela tremenda empreitada de reunir em quatro CD uma janela para a música da região registada em discos de 78 rotações no período exactamente anterior às recolhas de Chris Menist, junta a estas 90 faixas extasiantes (originárias de Laos, Camboja, Tailândia, Vietname, Malásia, Singapura, Indonésia e Myanmar) um livro de 272 páginas profuso em informação e contextualização do material que respeita ao intervalo 1905-1966, assinado por uma série de etnomusicólogos, assim como uma exposição de capas de discos de um grafismo exuberante que o mundo ocidental tem desde então tentado mimetizar sob as etiquetas cool ou kitsch.

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Um dos discos tailandeses resgatados pela compilação The Sound of Siam - Volume 2

Ao contrário de Menist, Murray vive em Oakland, na Califórnia. E, mais espantoso ainda, nunca visitou sequer o Sudeste Asiático que abastece boa parte das suas entradas no blogue Haji Maji. Em Oakland, Murray toca rabeca nos Squirrelly Stringband e bouzouki nos Disciple of Markos. E foi por aqui, pelo bouzouki grego, que começou a viajar virtualmente para a Ásia, quando ao pesquisar 78 rotações de rebetika começou também a investigar a música que era tocada nos antigos estabelecimentos de venda de ópio. Embora essa busca se tenha revelado infrutífera, colocá-lo-ia no encalço de uma outra pista: a ópera chinesa. “Nunca tinha ouvido nada que se lhe assemelhasse”, conta por e-mail ao Ípsilon. “Mas apaixonei-me instantaneamente e comecei a procurar 78 rotações de ópera chinesa, tão antigos quanto possível e, no mesmo impulso, antigas gravações de música tradicional de toda a China.”

A História encarregar-se-ia do resto. Ao seguir os passos dos emigrantes chineses que se espalharam pelo Sudeste Asiático, abriu a porta de um jorro interminável de gravações de toda a espécie de música, primitiva, de um sem-fim de tradições e povos distintos, muitas vezes desaparecida devido aos frequentes conflitos armados na região. Aí começavam igualmente as dificuldades, uma vez que “o processo de aprendizagem e de recolha foi muito lento, tendo em que conta que não existem reedições destes discos e escreveu-se muito pouco sobre estas músicas.”

Partindo de dez anos de investigação e de aquisição destes 78 rotações, David Murray dedicou os últimos cinco anos da sua vida a dar forma a Longing for the Past. O modelo estava, de certa forma, já estabelecido: a edição deveria funcionar como sucessora de Opika Pende, a caixa organizada por Jonathan Ward também para a Dust to Digital que compilava um olhar vastíssimo sobre música africana desenterrada do esquecimento. Ward, também ele um acumulador compulsivo de discos a que é preciso limpar o pó, ajudaria Murray com o empréstimo de alguns exemplares da sua colecção particular. Mas a maioria do material de Longing for the Past viria das compras realizadas por Murray a um grupo de “caçadores de discos” na região com quem trabalha regularmente. “Os caçadores de discos deitam a mão a tudo quanto conseguem encontrar. Nalguns casos mais felizes, consigo estabelecer uma ligação e eles vão-me informando dos achados. Mas como não são coleccionadores, não têm o mesmo tipo de preocupação sobre o estado de conservação. Pontualmente, interesso-me por um disco em mau estado se for de uma editora incomum, mas não há grande coisa a fazer com um disco que não se consegue ouvir.”

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Longing for the Past resulta de dez anos de aquisições de 78 rotações gravados em todo o Sudeste Asiático

Um dos objectivos de Longing for the Past era desvendar músicas tradicionais que nos soam longínquas – no espaço e no tempo. Daí que quanto lhe parecesse mais contaminado por pop tivesse sido excluído por Murray, na senda de uma música que soasse pura, mais indicativa da sua origem geográfica e de um tempo que se perdeu. Relativamente a algumas regiões, acabaria quase por desesperar. “A música do Laos, por exemplo, foi escassamente gravada. De facto, parece-me provável que nenhumas gravações deste período tinham sido realizadas no país. Felizmente, os músicos do Laos foram gravados em França e no Vietname. Noutros casos, pode levar anos até encontrar discos de uma certa região, até que a sorte me permite chegar a um comerciante que tem 40 discos vietnamitas para venda. Nunca se sabe quando alguém vai tropeçar numa caixa de discos esquecidos numa loja antiga ou num mercado.”

O mistério

Foi precisamente a sujar as mãos que Chris Menist e Maft Sai reuniram o material dos dois volumes de The Sound of Siam – no segundo disco, não havendo Rolling Stones, há uma guitarra lânguida em Mainaa Tan Pom Loey que percorre as notas de Summertime, enquanto a voz de Panom Promma, a esbanjar vibrato, lembra tanto as grandes vedetas da música indiana das décadas de 50 e 60 quanto Tony de Matos. Durante quatro anos, as muitas de horas de garimpagem em lojas e mercados foram depois testadas nas festas Paradise Bangkok para perceber o seu apelo – “Esse facto deu-lhe um contexto musical vivo e mostrou-me que não se trata de música antiga ou de arquivo, tem ainda impacto junto de um público jovem.”

O mais trabalhoso, e a grande armadilha em projectos desta envergadura, é filtrar o olhar deslumbrado de ocidental diante deste reportório para aferir do real valor histórico e até mesmo musical daquilo que se encontra. “Pode ser um pouco manhoso, mas eu, como vivo na Tailândia e tenho esta amizade com o Maft”, diz Menist, “passei muito tempo a discutir com ele esse tipo de pormenores. E quando começámos a entrevistar os artistas e os produtores encontrámos a forma perfeita para validar ou eliminar a informação que tínhamos coligido ao longo do tempo.”


Para David Murray, a trabalhar sobre um período em que os interlocutores terão já desaparecido ou cujos percursos de vida serão impossíveis de pesquisar, parte da dificuldade advém inclusivamente de “perceber que música e que línguas são cantadas nestes discos – até mesmo para pessoas que as falam fluentemente ou cresceram nestas culturas”. “Mas eu também não gosto de reedições em que o autor tenta fazer-se passar por um perito, muitas vezes exagerando e errando factualmente pelo caminho.” Quando a música é um mistério, assim deve permanecer. E em Longing for the Past, um faustoso banquete para os ouvidos, a informação pouco rouba a esse mistério e ao seu maravilhamento.

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