Um trabalho para 200 ou 300 anos

A tempestade de ferro que os dois lados em confronto fizeram chover na frente ocidental foi de tal modo brutal que, passado um século, ainda se encontram toneladas de obuses anualmente.

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Nesta região as pessoas têm uma abordagem diferente das que não estejam habituadas a lidar com isto. Noutros locais, que não tenham vivido este conflito, quando fosse encontrado um obus chamariam os bombeiros, a polícia, o presidente da câmara, enfim, seria uma catástrofe, seria preciso acalmar toda a gente, explicar que se não o aproximar do fogo, e não tentar abrir, não acontecerá nada”, diz o comandante adjunto da brigada de minas e armadilhas de Metz, Guy Mompere.

Os dez especialistas de Metz cobrem três departamentos – Moselle, Meaux e Meurthe-et-Moselle – e, em todo o país, há 300 “desminadores” como eles. A sua actividade é importante ao longo da antiga linha de trincheiras traçada de Norte a Sul, da Bélgica à Suíça, atravessando todo o território francês, que durante quatro anos foi a frente ocidental da I Guerra.

Alto, magro, óculos de aviador, Mompere deixou a Marinha francesa há quase 20 anos para vir trabalhar para a ponta Nordeste de França no desarmamento das munições da I Guerra que não explodiram. É um trabalho que parece não ter fim, tantos foram os obuses e morteiros disparados por ambos os lados. “Não há estimativas fiáveis de quantas munições restam nos campos, mas o que se pensa é que deverá haver ainda 200 a 300 anos de trabalho.”

As quantidades de recolha anual variam muito: “Por ano, é como os ‘grand crus’: há anos em que a colheita chega a 50 toneladas, outros em que nos ficamos apenas pelas 35”, diz Guy Mompere, com sentido de humor. “Temos entre 700 e quase 1000 intervenções anuais. Verdun foi uma grande batalha muito localizada, pelo que o grosso das intervenções se dá neste sector.”

Horrores de Verdun

De facto, sob a responsabilidade dos desminadores de Metz está o que resta dos horrores da grande batalha de Verdun, que durou quase um ano, em 1916.  Na ofensiva iniciada pelos alemães a 21 de Fevereiro de 1916, os alemães alinharam 1300 peças de artilharia a disparar continuamente contra posições francesas desde a madrugada e, até ao cair da noite, estima-se que num único dia se tenham lançado um milhão de obuses. Nesse dia de “choque e surpresa”, em que tudo ficou coberto de fumo negro e azulado, os obuses eram maioritariamente alemães.

Foi aqui que Mompere percebeu verdadeiramente o que foi o horror daquela guerra, quando começou a ler as múltiplas compilações de correspondência dos soldados franceses que lutaram na frente – eram entregues todos os dias seis milhões de cartas e encomendas, trocadas entre os combatentes e os seus correspondentes. Apesar disso, o correio era censurado, e os próprios militares tentavam não preocupar demasiado os seus familiares e amigos.

“Antes, quando estava na Marinha, não me interessava muito. Mas quando vim trabalhar aqui, comecei a tentar saber o que se passou mesmo na I Guerra. É inacreditável, quando se lêem as cartas dos ‘poilus’ [peludos, a alcunha pela qual ficaram conhecidos os soldados franceses, que aludia ao mesmo tempo à sua coragem e à dificuldade em manterem um aspecto impoluto no campo de batalha]. Aquela gente viveu o horror total e não podiam contá-lo, relatavam coisas quase banais [havia censura das cartas]. Em compensação, os que escreveram livros contavam aquilo que realmente viveram. E foi terrível. Atiravam contra eles, viviam na lama, na água, com os ratos, as pulgas, passavam fome.”

Os alemães tinham bombas monstruosas de duas toneladas que destruíam tudo o que encontrassem pelo caminho e projécteis de calibre 420 que levavam até 930 quilos de explosivos. Mas se os franceses inicialmente estavam em desvantagem, não deixavam por isso de descarregar tempestades de aço sobre a frente de Verdun. “Não é que a maioria sejam obuses alemães, toda a gente atirava. Podem ser alemães ou franceses”, especifica Guy Mompere.

Inferno em duas línguas

O pior ainda eram os fragmentos destas bombas, normalmente em ferro, que eram capazes de cortar um homem ao meio – ou levar-lhe um membro, pelo menos. Os sobreviventes contavam histórias horríveis. “As árvores foram ceifadas, há terra a voar por todos os lados. Um fumo acre arranha na garganta. A cada rajada que passa, o corpo contrai-se, os nervos ficam tensos, a respiração fica ofegante, mais irregular…”, contou o aspirante Bourdillat do 2º Batalhão de Caçadores a Pé, sobre o dia 25 de Fevereiro de 1916, quando caiu o forte de Douaumont, a principal fortificação de Verdun, num depoimento publicado no site http://www.lesfrancaisaverdun-1916.fr/temoi-champs.htm , mantido por um dos muitos franceses apaixonados pela I Guerra.

“Ao meu lado, o tenente Fleury levanta-se: ‘Bourdillat’, diz-me ele, ‘vou ver o que se passa; estou tão nervoso que tenho de me mexer.’ ‘Não saia do buraco, meu tenente’, digo-lhe eu, ‘é uma imprudência.’ Mal ele pôs a cabeça acima da borda da trincheira, um fragmento de obus arranca-lhe a cabeça… Fico a olhar estupidamente para o bocado do maxilar inferior que ficou agarrado ao corpo … É pavoroso.”

Para além da morte sempre presente, o campo de batalha durante um bombardeamento era um atordoamento dos sentidos. Fumo, diferentes brilhos e cores consoante as cargas dos obuses – clarões azuis, vermelhos, laranja, um fogo-de-artifício que cegava. E o barulho era ensurdecedor, de fazer tremer o chão. Diz-se que os soldados acabavam por saber discernir o som de cada uma das bombas, consoante o seu calibre. A palavra “inferno” surgia nos escritos tanto dos soldados franceses como nos dos alemães.

Para além das bombas serem explosivas, podiam ter outras funções. Podiam lançar fumos que escondessem o avanço das tropas e cegar o adversário, por exemplo utilizando agentes químicos como fósforo e anidrido sulfúrico e outros líquidos corrosivos, ou então as armas químicas de má fama, que na I Guerra Mundial foram usadas amplamente pela primeira vez por todos os grandes beligerantes.

Mas a maioria dos obuses descobertos hoje nos antigos campos de batalha, passados 100 anos, são apenas explosivos. “Nem chegam a 2% os que têm carga de gases tóxicos. É quase idêntico em todo o lado”, garante Guy Mompere.

Lavrar um campo de obuses

“Não fazemos trabalho de pesquisa activa de munições. Fazemos apenas recolha, depois de alguém as ter descoberto”, explica Carl Haller, outro dos peritos de minas e armadilhas de Metz, que levantou o obus no meio do campo de trigo e de ervilhas.

“Quando as pessoas descobrem munições, informam a câmara e depois entramos nós em acção. Trabalhamos mais na Primavera e no Verão, porque no Inverno as actividades no bosque e no campo diminuem e são encontradas menos munições”, diz. Normalmente, quem dá o alerta é quem anda a passear na floresta, ou a apanhar lenha ou cogumelos, ou então funcionários do Serviço Nacional das Florestas.”

Os agricultores descobrem munições antigas frequentemente. “Uma pessoa contou-me há pouco tempo que a sua família lavrou na década de 1960 um terreno que não tinha sido tocado desde a I Guerra. Os obuses eram tantos que o trabalho dele, que tinha sete anos na altura, era recolher à mão as bombas que o pai ia encontrando à medida que ia lavrando a terra. O pai tinha-lhes dito que se pegassem delicadamente nos obuses e os pousassem com todo o cuidado não havia problema”, conta Guy Mompere. “As pessoas aqui praticamente nasceram com isto, estão habituados a lidar com as munições, a pô-los de lado. As máquinas agrícolas modernas é que são muito violentas, já não dá para fazer isto”, conclui.

O obus levado por Carl Haller do campo agrícola foi descoberto por Guillaume Benoit, um empreiteiro que trabalha para a empresa de electricidade EDF. “Estava a preparar o terreno para a obra, que será substituir o suporte em betão do poste de electricidade”, explica. “Nesta região os agricultores costumam encontrar obuses nos campos, sim”. Mas para ele é a primeira vez, e não ficou lá muito descansado com o seu achado. “Não me quero aproximar muito!”, diz quando mostra o local aos profissionais das minas e armadilhas.

Calor e explosão

“Há explosões espontâneas, mas isso não é a norma”, garante Guy Mompere, após outra paragem para recolher mais obuses. “Se contiverem fósforo e houver rupturas na cápsula, pode criar-se tensão interna e, com o calor, incendiar-se.” Outra hipótese, diz, relatando um acidente que ocorreu em instalações dos desminadores em Arras, é que o calor pode desencadear uma reacção química, se estiverem muitos obuses armazenados junto a uma fonte de calor.

“Eram muitos e estavam no exterior, numa caixa. Era Junho, acho, e estava muito calor, o Sol batia neles todos os dias. A noite não chegava para fazer baixar a temperatura daquela massa explosiva. É preciso saber que alguns químicos explodem quando chegam a 75 graus”, frisa. “Os meus colegas salvaram-se porque foram bem-educados: foram dizer bom-dia ao guarda que estava a trabalhar num pequeno ‘bunker’ do outro lado do edifício, no preciso instante em que se deu a explosão. Se não fosse assim, teria havido mortes.”

Voilá. Vale a pena ser bem-educado!”, remata, a caminho de outro local onde serão recolhidos mais obuses da I Guerra. Este é numa clareira da floresta plantada na chamada Zona Vermelha – a área das antigas trincheiras.

Após a Guerra, o Governo francês considerou que algumas áreas estavam tão contaminadas com material militar e restos humanos que a opção foi considerá-las como uma espécie de cemitério nacional e preservá-la. Para isso foram plantados cerca de 120 mil hectares de floresta, nalguns casos usando pinheiros vindos da Alemanha, como parte da indemnização a que ficou obrigada, como perdedora da guerra. Em Verdun, existe ainda hoje uma floresta de 10 mil hectares na antiga Zona Vermelha, que é uma floresta de guerra.

Estes obuses foram encontrados por funcionários do Serviço Nacional de Florestas e estão bastante bem assinalados nesta clareira. É ampla mas, mesmo assim, os raios do Sol não chegam muito cá abaixo, tão cerrada é a floresta. Junto a uma árvore onde foi pintado a tinta amarela “OB” lá estão eles, uns quantos obuses de diferentes tamanhos, empilhados à espera de serem recolhidos, pintados com riscas de tinta vermelha e amarelo vivo.

Mais atrás, uma vala que é resto de uma trincheira que por ali passava. Passarinhos a cantar, insectos a voar como doidos, musgo espesso como uma barba de avô nos troncos virados a Norte – a cena não podia ser mais pacífica, mas não se pode esquecer que há ali explosivos.

“Não há muitos acidentes, as pessoas são prudentes, sabem que não podem fazer fogo na floresta. Os caçadores de relíquias é que são um problema: organizam expedições, usam detectores de metais, embora seja proibido. Se tentam abrir obuses, isso pode ser muito perigoso. Basta raspar com uma ferramenta para aumentar a temperatura e provocar uma explosão”, avisa Mompere.

E os incêndios florestais? “Não estamos nunca a salvo, mas há muitos avisos na floresta para não fazer fogo, para não atirar nada ao chão. Se houvesse um grande incêndio nalgumas zonas da floresta de Verdun, a única solução era ficar do lado de fora e fazer todos os esforços para evitar que chegasse à estrada”.

Estas florestas que preservam o campo de batalha têm uma grande biodiversidade: pequenos mamíferos como castores, cervos, morcegos, muitas aves, até cegonhas-negras, diz Daniel Gadois, outro especialista da brigada de minas e armadilhas, que estava na floresta à espera para levar a equipa de recolha até aos obuses, uma vez que não era fácil dar com eles. “Como não há agricultura aqui, não há pesticidas, logo há muitas aves”, explica.

Termina tudo em bum!

E mais uma vez, um a um recolhem os obuses: os mais pequenos, docemente, pegam-lhes por baixo e levam-nos nos braços, à frente do peito, até ao jipe, onde ficam guardados numa armação de metal que permite transportá-los uns ao lado dos outros, sem que saiam do lugar. “Podemos transportar até 300 quilos de uma vez”, diz Mompere. Por isso têm sempre de ir calculando o peso total dos obuses que recolhem. Para o maior que recolheram neste dia – deveria ter 43 quilos – foram buscar uma armação de metal desdobrável que permite que seja carregado por duas pessoas.

As munições recolhidas são levadas para um antigo armazém militar, onde são separadas de acordo com as dimensões e tipologia, em caixas de madeira. Parecem apenas coisas velhas e ferrugentas – quem vê caras não vê corações.

Ali ficam a aguardar o momento de serem destruídas – o que se faz com uma grande explosão, no campo militar de Suippes.

“Para as destruir procuramos obter o máximo poder explosivo, para que tudo o que esteja lá dentro fique partido em bocadinhos pequeninos”, diz, e pega num papel e numa caneta para fazer um esquema para ajudar a explicar como se faz para eliminar estas munições que duraram um século.

“Abre-se um buraco de quatro metros de profundidade e põem-se lá as caixas que estão aqui, dispostas em vários andares e encostadas umas às outras: as que têm as munições mais pequeninas em baixo, as médias em cima, bem apertadinhas umas contra as outras, e no topo as maiores. Depois, pomos um detonador nos obuses da camada superior e uma carga de minas de sete quilos por cima, de explosivos de alta qualidade. Pomos um cabo detonador, que transmite uma ordem de detonação e fazemo-lo passar por todas as caixas e por todas as minas. Quando está terminado, saem dois cordões detonadores do buraco. Tapa-se tudo, pomos uma montanha de terra em cima e a seguir o detonador, de onde saem 200 metros de fios eléctricos.”

A explicação, passo a passo, termina com a informação de que a ordem para fazer detonar esta enorme bomba é dada a cerca de 1,3 quilómetros de distância. “É preciso ter grandes áreas livres, e Suippes é um campo militar enorme, tem uns 20 mil hectares”, diz. “Geralmente, destruímos munições uma vez por mês, ou uma vez a cada dois meses.

Quanto aos obuses que têm cargas químicas, seguem um procedimento diferente. Quando há suspeitas, são enviados para raio-X para confirmar. E, desde há cerca de uma década, quando a França ratificou a Convenção sobre a Interdição de Armas Químicas, estão a ser armazenados à espera da construção de uma fábrica onde possam ser convenientemente desmantelados. Até então eram feitos explodir na baía de Somme.

O projecto tem o nome SECOIA – a sigla em francês de Local de Eliminação das Cargas de Objectos Antigos Identificados – e espera-se que esteja concluído e 2016, no campo militar de Mailly, com um custo estimado de 100 milhões de euros. Até lá, o “stock” de munições químicas antigas continuará a crescer – é já superior a 260 toneladas – ainda que estas sejam uma minoria das que Mompere e os seus colegas encontram. 

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Guy Monpere (à direita) e um colega da equipa de desminagem
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“Nesta região os agricultores costumam encontrar obuses nos campos", diz o empreiteito Guillaume Benoit
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As munições recolhidas são levadas para um antigo armazém militar, onde são separadas em caixas de madeira
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O material encontrado fica a aguardar o momento de ser destruídas – o que se faz com uma grande explosão, no campo militar de Suippes
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