As investigações em curso de Fred Frith no Jazz em Agosto

Apresentando-se a bordo de três projectos distintos, o guitarrista Fred Frith foi a figura de destaque da entrada do Jazz em Agosto na recta final. E a conclusão é que a reconstituição história é menos entusiasmante do que a fabricação de nova história.

Foto
FCG/Márcia Lessa

Fred Frith pode aplicar uma trincha às cordas da sua guitarra todas as noites. Mas o facto de recorrer a uma série de técnicas insólitas que compõem o seu arsenal criativo e o distinguem de forma absolutamente clara dos demais guitarristas na orla do jazz apenas reforça a certeza de que um músico é, em cada momento, aquilo que os outros o deixam ser e lhe pedem que seja.

Ou seja, uma trincha não é uma trincha não é uma trincha. E isto porque tendo cabido ao guitarrista inglês o lugar mais destacado da 31ª edição do Jazz em Agosto, no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, foi um guitarrista consideravelmente diferente aquele que encontrámos ao longo de três noites consecutivas, entre quinta-feira e sábado. De onde se tornou fácil concluir o peso da relação com os músicos que o acompanhavam e do seu histórico de actuações com cada formação na forma como Frith abordou cada concerto

Com o trio de improvisação rock Massacre, ao lado de Charles Hayward e Bill Laswell, é fácil perceber a demonstração em palco do papel seminal que o trio teve no dobrar da década de 70 para 80, quando a cena downtown nova-iorquina destruía as certezas do que era então o jazz e a música improvisada. Integrando o numeroso e deflagrador grupo de colaboradores de John Zorn, Frith passaria naturalmente pelos Naked City, máquina de trituração rock-jazz. Mas seria com os Massacre – mais os Skeleton Crew e os Keep the Dog –, mais o álbum solitário Guitar Solos, que Frith iria colocar o seu nome na prateleira dos músicos fundamentais do jazz e da música improvisada de então.

Foi a segunda formação dos Massacre, recriados em 1998 após uma pausa de mais de 15 anos, que Frith trouxe no sábado ao Jazz em Agosto. E talvez seja pelos percursos individuais de cada um que hoje o nome Massacre pareça uma palavra desajustada para descrever a sua música. Num contexto em que a sua inventividade surge inevitavelmente mais regrada, o grupo perdeu a urgência que o caracterizava nos primeiros tempos – oiça-se o notável Killing Time (1981) –, e não deixando de se definir a partir do brilhantismo interpretativo de Frith soa, por vezes, a uma inatacável reconstituição histórica, mas a que falta algum nervo. Sobretudo porque sendo Hayward capaz de integrar e dar réplica ao carácter cada vez mais percussivo da guitarra de Frith, Laswell só quando se agarra a uns vapores de torpor dub e funk mantém a música sob brasas, fugindo-lhe a mão sempre que impregna o baixo de efeitos e filhos de efeitos ambientais que amolecem a música. Magnífico, seria o segmento em que Haywarth e Frith construíram para melódica e guitarra um western-blues sombrio em marcha lenta.

Sem sentidos obrigatórios
Nas duas noites anteriores, a conversa seria consideravelmente diferente. Tendo por principal interlocutora a contrabaixista Joëlle Léandre, Frith libertar-se-ia, paradoxalmente, da sua própria trajectória de escape para o rock assinada com o trio Massacre. Em vez disso, explorando a fundo o papel da guitarra enquanto motor rítmico e deixando emergir apontamentos melódicos que funcionavam como momentos de alívio e redenção, havia de encaixar de forma admirável na linguagem contemporânea, inquieta e até mesmo perturbadora de Léandre. Num certo sentido, e sobretudo no concerto assinado em trio com o baterista Hamid Drake, ficaria claro como o jazz, a música erudita contemporânea e o rock, quando desembaraçados dos seus limites, se tornam mundos próximos, alinháveis em torno de um mesmo centro gravitacional.

Talvez por isso, a estreia de Frith e Léandre com Drake tenha produzido os resultados mais notáveis destas três noites em que o guitarrista participou. Em palco, esteve presente um permanente mistério, um perscrutar de possibilidades assente nesse ponto de partida que era o relativo desconhecimento do outro. Frith e Léandre são há muitos colaboradores vizinhos, mas o elemento estranho da bateria (tão depressa esparsa quanto ritualística) do copioso Hamid Drake foi suficiente para que a música nunca assentasse completamente, fixando-se numa busca permanente, tensa, insatisfeita, quase acidentalmente bela.

Propositadamente mais instável, o MMM Quartet, em que Frith e Léandre se apresentariam ao lado de Alvin Curran e Urs Leimbruger, constituiria o mais arredio dos três concertos, assente numa longa relação entre os quatro professores do Mills College – MMM é acrónimo para MillsMusicMafia. De longos lamentos a peças soltas que lentamente se vão organizando até produzir um crescendo, porém logo boicotado em seguida, foi com o MMM Quartet que a filiação de Léandre nas músicas de John Cage e Pierre Boulez mais se expôs, naturalmente, carregando numa música contemporânea árida e de composição em tempo real – apesar de algumas marcações que se diriam, se não ensaiadas, certamente telepáticas, sobretudo entre a guitarra de Frith e o piano de Curran.

Foto
No concerto assinado em trio com o baterista Hamid Drake e com a a contrabaixista Joëlle Léandre ficaria claro como o jazz, a música erudita contemporânea e o rock se tornam mundos próximos

No seu posto de operações, Curran agitaria igualmente o colectivo com recurso a samples avulsos que obrigavam a recentrar o discurso conjunto. E se a noite permitiu a Léandre algumas veleidades falsamente operáticas no tema final (por oposição aos vocalizos guturais da véspera), como se não houvesse verdadeiramente territórios sagrados aqui, realçou igualmente um dos comportamentos tipo de Frith: para lá da trincha, de brincar com a afinação da guitarra em plena execução, o músico recorre também a um pano com que cobre a guitarra, como que oferecendo-nos a simbologia de um instrumento em que procura esquecer-se (e fazer-nos esquecer) de regras e sentidos obrigatórios.

Apesar da estimulante apresentação do MMM, na memória desta recta final do Jazz em Agosto ficaria sobretudo o novel trio de Léandre, Frith e Drake, quando uma música verdadeiramente surpreendente foi inventada diante do público, e se mostrou no mais misterioso e inaugural estado de investigação.

Sugerir correcção
Comentar