The Fool em Locarno: haverá esperança para a Rússia moderna?

The Fool, de Yuri Bykov, é um filme tenso sobre o colapso moral da Rússia, num dia que também trouxe um olhar ensaísta sobre a Coreia do Norte

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"The Fool": a história de um homem cujo altruísmo o condena à partida, cuja rectidão e honestidade está desfasada do mundo em que vive
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A tensão cinemática que traduz a noção de que é o tecido moral de uma sociedade que está em jogo e inteireza de Artyom Bystrov no papel principal, tornam The Fool numa viagem ao fundo das contradições de um país
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Songs from the North é um filme-ensaio que propõe um olhar "de fora" sobre a Coreia do Norte vista "de dentro": a realizadora sul-coreana usa a música, as canções e as imagens de propaganda do regime da dinastia Kim para pensar o seu isolamento

O filme do russo chama-se Durak - o título inglês é The Fool, ou seja, "O Idiota". A referência ao clássico de Dostoievski não fica só pelo título - esta é a história de um homem cujo altruísmo o condena à partida, cuja rectidão e honestidade está desfasada do mundo em que vive.

Mas lá por ter em comum com o seu antepassado do século XIX o mesmo idealismo e o mesmo fatalismo resignado, não deixa de ser objecto do seu tempo. 

The Fool (Concurso Internacional) é um espelho erguido à corrupção moral e egoísta de uma Rússia moderna que, como Bykov parece dizer, só mudou na fachada. No resto, tudo continua tão corrupto - ou mais - do que nos tempos soviéticos. E essa sensação de "tudo muda para que tudo fique na mesma" é algo que se aplica igualmente ao ensaio que a sul-coreana Soon-mi Yoo fez a partir das suas visitas à Coreia do Norte, Songs from the North (Cineastas do Presente). Dois olhares sobre duas sociedades que o Ocidente ainda vê com alguma estranheza e algum exotismo, num dia em que Locarno amanheceu cinzenta e chuvosa.

Não são, é certo, filmes que nos digam nada de novo. A corrupção e compadrio que identificamos quer com a URSS quer com a Rússia de Vladimir Putin têm sido objecto de reportagens, documentários, ficções - e o filme de Yuri Bykov é dedicado ao falecido Aleksei Balabanov, um dos mais explícitos "acusadores" da moderna cinematografia russa. A sua história de um canalizador que descobre que um prédio residencial com 800 habitantes está à beira de ruir e decide avisar as autoridades é uma espécie de versão moderna de Pedro e o Lobo, com o prédio a ser uma metáfora inquietante do colapso moral da sociedade russa - um colapso que está sempre à beira de acontecer e é sempre evitado de justeza, até ao dia em que...

Ao seguir o que a sua consciência moral lhe dita, Dimitri Nikitin sabe o ninho de víboras em que se está a meter - só não sabe a potência do veneno. E Bykov filma a história, que decorre ao longo de 12 horas, com a urgência e a vertigem de quem tem de fazer algo agora, apenas para descobrir que um homem sozinho contra uma corrupção institucionalizada e uma sociedade disfuncional talvez não consiga resolver nada. 

Corrida contra o tempo
É essa urgência, essa "corrida contra o tempo" admiravelmente gerida pelo cineasta russo (que também escreveu e montou o filme), que eleva The Fool acima do mero filme-denúncia ou thriller social. Cria uma tensão cinemática que traduz de modo angustiante e a noção de que é o próprio tecido moral de uma sociedade que está em jogo, e isso, ajudado pela inteireza de Artyom Bystrov no papel principal, torna The Fool numa viagem ao fundo das contradições de um país. Haverá esperança para a Rússia moderna, enquanto idealistas como Dimitri Nikitin for apelidada de "idiota"?

Soon-mi Yoo faz a mesma pergunta relativamente à Coreia do Norte, mas numa outra vertente, menos acusadora e mais retórica. Songs from the North é um filme-ensaio que propõe um olhar "de fora" sobre a Coreia do Norte vista "de dentro" pela realizadora sul-coreana, usando a música, as canções e as imagens de propaganda do regime da dinastia Kim para pensar o seu isolamento. 

Intercalando essas imagens de arquivo com material rodado nas suas visitas ao Norte e uma entrevista ao pai, que evoca os tempos que levaram à divisão em duas Coreias, Yoo explora a dimensão humana do país e o modo como ela foi manipulada ao longo das décadas pelos Kim. Mas o seu interesse genuíno pelas pessoas e pela sobrevivência quotidiana num país sem amigos nunca consegue elevar Songs from the North ao ensaio tocante que podia ser; fica-se por um simpático "gabinete de curiosidades" que nunca consegue furtar-se ao olhar "de fora".

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