Era uma reparação urgente, se faz favor

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Era uma segunda-feira e eu, provavelmente, tinha acabado de subir a Rua do Dr. Ricardo Jorge a pensar que não me apetecia por aí além iniciar mais uma semana de trabalho (as segundas-feiras são tramadas, é o que é). Devia ir distraída, com alguma coisa que tinha lido na viagem do metro ou a pensar em alguma coisa que tinha para fazer nesse dia. Mas, quando cheguei ao Largo de Mompilher, o cheiro a queimado que pairava no ar despertou-me os sentidos. O quiosque de traços japoneses tinha ardido.

Foi uma sensação esquisita, porque eu estava ali a olhar para ele e, aparentemente, o quiosque estava intacto. Os painéis de madeira continuavam do mesmo vermelho-vivo, com os desenhos de portadas e cobertura debruados a branco. O quiosque estava intacto, mas não estava. Como tantas vezes acontece, o exterior disfarçava a comoção interior que por ali ia.

Ao passar em frente à estrutura de madeira, construída nos anos 30 do século XX e classificada como Imóvel de Interesse Municipal, não restaram dúvidas — era lá dentro que o fogo tinha andado. Fosse qual fosse o dano causado, era todo interno.

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O quiosque japonês foi construído na década de 1930 para substituir um outro, em ferro e mais pequeno, que ali existia

Nesse dia, um colega escreveu a notícia. Falou com o proprietário e os bombeiros, que confirmaram ter andado por ali a apagar as chamas que iluminaram a noite quando a madrugada ia alta. Não se sabia se tinha sido um curto-circuito, um qualquer acidente ou fogo posto. O proprietário dizia que não tinha seguro e que estava em vias de vender o pequeno espaço comercial onde era possível comprar jornais e revistas. Mas que agora, com o incêndio e tudo, não sabia o que ia acontecer. Dias depois, outras notícias diziam que o negócio se tinha concretizado e que o quiosque ia ser recuperado e reabriria, não necessariamente para vender jornais.

O incêndio não foi assim há tanto tempo. Foi a 9 de Junho, por isso nem dois meses se passaram. Mas tem sido uma tristeza passar pelo Largo de Mompilher. É que, a cada dia que passa, o quiosque parece cada vez mais degradado. Primeiro, só com algum esforço se percebiam fissuras a deixar espreitar o negrume que as chamas tinham deixado no interior. Depois, partiu-se um pedaço do painel sob a abertura onde os clientes escolhiam o que queriam comprar. Mais uns dias e alguns dos pequenos vidros que rodeiam o tecto pontiagudo, de características claramente japonesas, estavam partidos e o painel que perdera um pedaço já se perdera por completo. Lá dentro vão crescendo copos de cerveja e outros lixos, entre os restos queimados dos jornais e revistas. Outros painéis inferiores da estrutura já desabaram ou desapareceram.

O quiosque japonês, como é conhecido por estas bandas, foi construído na década de 30, depois de, em 1930, Alberto Teixeira Brandão ter dado entrada na Câmara do Porto com um projecto de construção de um quiosque que iria substituir um outro, em ferro e mais pequeno, que ali existia. O largo ainda era da Picaria, e só mudaria de nome por deliberação de 17 de Março de 1942, em honra da Universidade de Montpellier, em França. Quanto ao quiosque, teve altos e baixos.

Já teve dias maus, já passou largos períodos fechado e lembro-me, vagamente, de há alguns anos, aquando da sua última reabilitação e reabertura, ter sido motivo de notícia. Depois, tudo entrou na normalidade.

O quiosque estava ali, bonito e bem tratado, às vezes aberto, outras vezes não. Agora, está a desfazer-se perante os nossos olhos. As mazelas interiores estão a expandir-se, a enfraquecer o que resta. Não sei se o que resta ainda pode ser salvo. Se o interior é, de alguma forma misteriosa, desligado do exterior e se é possível reconstruir as suas entranhas mantendo os painéis que ainda brilham com tinta vermelha e branca ou se, pura e simplesmente, tudo não é um engano e o quiosque terá de ser desmantelado e refeito do início para voltar à vida. E, se assim for, irá respeitar-se a classificação que obriga a preservar o quiosque tal como era?

Não se sabe o que vai acontecer ao quiosque, mas o pior seria o que lhe está a acontecer agora. Morrer aos poucos, um dia de cada vez. Desde que a degradação se acentuou que subo a rua com a esperança de que aquele será o dia em que, chegada ao largo, verei alguém a tentar trazer o quiosque de volta à vida. Pode ser numa segunda-feira ou noutro dia qualquer. Podia ser já nesta segunda-feira.     

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