Está em movimento a engrenagem da tensão

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Vladimir Putin está a cometer demasiados erros de avaliação, o que é perigoso. A tragédia do avião da Malásia mostrou os riscos da sua política ucraniana e da perda de controlo sobre os bandos "separatistas". A seguir, perdeu a oportunidade de contribuir para uma desescalada sem perder a face. Está agora confrontado com a perspectiva de sanções mais duras, que poderão constituir uma séria ameaça para economia russa. Na sua lógica, não recuará — isto é, calcula que não pode recuar por razões de prestígio e de poder doméstico — e ampliará consequentemente a dimensão da crise.

O analista russo Aleksander Morozov explicou à Reuters que o Presidente teria podido atenuar a reacção ocidental e reduzir o nível das sanções de uma forma simples: demarcando-se dos separatistas. Terá calculado que isso não lhe traria dividendos políticos. Agora é tarde: "Ele falhou a oportunidade." E lançou-se em diatribes anti-ocidentais.

Outro analista, Nikolai Svanidze, disse a uma rádio de Moscovo: "Penso que a nossa liderança é experiente mas creio que não avalia devidamente a mentalidade do Ocidente." Os mortos do "voo 17" endureceram a atitude ocidental, atenuaram as divergências entre a UE e Washington sobre as sanções e "reduziram a resistência do poderoso lobby económico alemão".

"O avião mudou tudo", diz ao Washington Post Sophia Pugsley, especialista nas relações UE-Rússia no European Council on Foreign Relations. "E o que fundamentalmente mudou foi a atitude alemã." Berlim será quem mais perde, já que largos sectores da sua economia estão ligados à Rússia. "Não sabemos se a Rússia quer ser nosso parceiro ou nosso adversário", declarou à Spiegel o MNE alemão, Frank-Walter Steinmeier. A Alemanha — explica — está a meio caminho entre os países do Leste europeu, vizinhos da Rússia, e os da costa atlântica que têm uma visão diferente do peso de Moscovo.

Os governos ocidentais são forçados a agir e podem acreditar que as sanções levarão Putin a repensar a sua estratégia, evitando que esta crise o encoste à parede. Mas o que se passará será previsivelmente o inverso. Moscovo endurecerá a sua postura. "Putin já investiu demasiado, seja de um ponto de vista geopolítico seja em termos do seu estatuto [político] doméstico para ser convencido por sanções", afirma Nicholas Spiro, director de uma agência britânica de riscos estratégicos. "[O avião] está a forçá-lo a endurecer a postura anti-ocidental muito mais cedo do que desejaria. Putin não quer queimar as pontes com as grande economias europeias, mas agora pode ser forçado a fazê-lo."

Um preço elevado
Putin está de certo modo prisioneiro da sua retórica nacionalista e "imperial". Uma sondagem do independente Levada Center indica que 61% dos russos dizem não temer as sanções, enquanto 64 culpam o Ocidente pela crise ucraniana.

A economia russa está à beira da recessão e as sanções terão efeitos graves ao nível da transferência de tecnologias e do investimento. Alexei Kudrin, antigo ministro das Finanças de Putin, teme o isolamento. Diz à Reuters: "Tenho sérias preocupações de que a escalada do conflito da Ucrânia leve à conclusão (...) de que não precisamos das melhores práticas do mundo. De facto, uma tal atitude prejudica seriamente a modernização da Rússia."

O desígnio que guia Putin desde a sua eleição em 2000 é devolver à Rússia o "estatuto a que tem direito" no mundo, isto é, o papel que a antiga União Soviética ocupou — falar de igual para igual com os EUA e reduzir a influência global ganha pelos EUA no pós-Guerra Fria. "Mas para isto não pode estar isolada nem tornar-se, pelo seu comportamento ou pelo dos seus homens de mão, numa espécie de estado-pária", anota o analista francês Daniel Vernet.

Para lá da Ucrânia
O analista russo Dmitri Trenin, director do Carnegie Moscow Centre, traça um quadro sombrio. A Rússia vai transformar as sanções numa "confrontação política com os Estados Unidos". É uma luta sobre a nova ordem internacional. "Num futuro previsível, a Ucrânia permanecerá o principal campo de batalha desta luta. As tácticas de Moscovo podem variar mas não reside aqui o âmago dos seus interesses."

Prossegue: "Em termos globais, a competição não é tanto pela Ucrânia como pela Europa e pela sua direcção. (...) Idealmente, a Rússia quer ver a Europa tornar-se estrategicamente independente dos Estados Unidos." De resto, precisa de ter acesso à tecnologia e aos investimentos europeus. "Trabalhará duramente para proteger o mercado do abastecimento energético da Europa. Neste esforço, coloca a ênfase na Alemanha, Itália, França, Espanha e outros pequenos países com quem estabeleceu extensas relações comerciais." A longo prazo, tem a miragem de repartir a direcção da Europa com a Alemanha.

Conclui Trenin: a parada é muito alta. "Os Estados Unidos e a NATO voltam a ser prováveis adversários. (...) A competição, mesmo desigual e assimétrica, será provavelmente muito dura e longa. As sanções não farão recuar Putin."

Mas põem em causa as suas ambições geopolíticas. O Kremlin pode ter já passado o "ponto de não retorno" sobre a Ucrânia. Resta saber se a sua aposta num confronto com o Ocidente, e com os EUA em particular, não constitui mais um erro de avaliação com efeitos dramáticos para o mundo e, sobretudo, para própria Rússia. De qualquer modo, parece já em movimento a engrenagem da tensão.

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