O cometa Earthless passou pelo Milhões de Festa e ainda não recuperámos da visão

A banda americana deu um dos melhores concertos da história do festival no dia em que o Milhões de Festa 2014 chegou ao fim. Nos dois últimos dias, destacaram-se Mdou Moctar, Glockenwise, Jagwa Music ou Filho da Mãe & Norberto Lobo.

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Earthless Miguel Nogueira
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Vinte minutos. Sem pausas. Uma guitarra infernal que guincha e geme, que é neblina eléctrica e furacão descontrolado. Um baixo e uma bateria avançando como locomotiva muito bem governada – mas tudo acontece tão rápido, com uma tal liberdade, que a governo soa deliciosamente desgovernado.

O sol já desceu há muito sobre o parque e a neblina que chegou com o entardecer do último dia de Milhões de Festa, domingo, misturada com as luzes que irradiam do palco, acentuam o efeito que a música provoca. É absurdamente intenso, é rock’n’roll reduzido (que dizemos, amplificado) à sua essência. São os Earthless, o trio de San Diego que era uma das bandas mais aguardadas da edição 2014 do festival. Aqueles vinte minutos sem pausas, noutra banda, seriam o apogeu do concerto, a despedida em êxtase. Nesta, são apenas o início, a primeira das quatro músicas que preencheram um concerto que se destaca não só entre os vistos em Barcelos este ano, mas em toda a história do Milhões de Festa. Isto, num último dia de festival particularmente fértil: os Night Beats, de Austin, talvez inspirados pelos Earthless que os antecederam, deixaram o seu blues psicadelizado de lado e deram continuidade ao delírio eléctrico; Filho da Mãe e Norberto Lobo, guitarristas exímios, encontraram-se pela primeira vez em palco para um belíssimo diálogo ao final de tarde (a sensibilidade do dedilhado na guitarra acústica, os fraseados que se soltavam livres e imprevisíveis sob uma mancha sonora em fundo que, a espaços, crescia até se tornar mantra noise); os londrinos Melt Yourself Down, que encerraram a actividade no palco principal, o Milhões, que foram transe afrobeat animado por espírito punk, com saxofones enfurecidos, uma secção rítmica vitaminada e um vocalista encarnando o espírito agitador de um Zack de la Rocha.

Enquanto a banda tocava perante os cerca de dois milhares de resistentes, relógio já nas três da madrugada, o frenesim da dança fazia levantar-se uma nuvem de pó na frente do palco. Dela, irromperia um comboio dançante, deliciosamente absurdo, notavelmente feliz. O cenário não era novo. Horas antes, no outro palco instalado no Parque Fluvial de Barcelos, o Vodafone FM, um conjunto de tanzanianos, os Jagwa Music, haviam provocado a mesma reacção. A banda formada por um vocalista que incitaria “Tanzânia!”, “África!”, por três percussionistas (djambés improvisados e um banco de madeira percutido criando um ritmo torrencial, incessante), uma dançarina de sorriso aberto e corpo elástico e um teclista que extraía sons ondulantes, distorcidos, de um órgão Casio barato, qual minimalismo Suicide em linguagem de Dar Es Salaam, acentuava a cadência de uma das suas canções quando outro comboio se forma espontaneamente e começa a percorrer o recinto.

Entre as dezenas de pessoas dançando em fila, vemos felizes da vida os ingleses Soccer 96, autores de um dos grandes concertos do festival, sexta-feira. Vemos, a encerrar o comboio, o saxofonista que os acompanhara ao final da tarde no Palco Taina (juntam-se o teclista e baterista dos Soccer 96 ao saxofonista e nascem os The Comet Is Coming, que são festim de rave colidindo com hard-bop e os fraseados curtos de Manu Dibango). Neste festival, os músicos divertem-se tanto quanto o público - os músicos são, também, o público.

Uma rede

Joaquim Durães, programador e ideólogo, chamemos-lhe assim, do festival, destacava isso mesmo, esse sentimento de partilha, no balanço da quinta edição barcelense do Milhões de Festa, destacando Isaiah Mitchell como representação máxima dessa ideia. Ao longo dos quatro dias de festival, o guitarrista dos Earthless deu quatro concertos: a solo no Palco Taina; com os Earthless; inserido no concerto inédito que o juntou aos Black Bombaim, a Shela, dos Riding Pânico, e ao saxofonista Rodrigo Amado no auditória da Casazul; e de forma absolutamente inesperada (pegou da guitarra, começou a tocar de si para si, miúdos curiosos foram-se reunindo e nasceu um concerto extra na programação do Milhões).

Num ano em que, pela primeira vez, o número de espectadores diminuiu em relação à edição anterior (terá atingido uma média de três mil espectadores por dia, em vez dos quatro mil habituais), Joaquim Durães reconhece que o facto obrigará naturalmente a uma reflexão, a uma maior agilização da relação burocrática com a Câmara de Barcelos, co-organizadora, de forma a que toda a preparação do festival comece a ser feita o mais cedo possível, permitindo que a programação chegue ao público com a antecipação necessária. Acentua, porém, que tal não macula aquilo que aqui, no Milhões de Festa, se atinge: uma rede entre público, bandas, promotoras e cidade que já frutificou e que continuará a frutificar. Prova disso, as parcerias estabelecidas com estruturas como a Red Bull City Gang, responsável pelo Palco Piscina, a promotora espanhola Music Week e a editora galega Matapadre, a brasileira Desmonta, a portuguesa SWR ou a inglesa Baba Yaga’s Hut, e o “intercâmbio constante” entre estruturas independentes que daí nasce. Com a edição deste ano, acentua Joaquim Durães, fecha-se um ciclo. “Com o concerto dos Earthless”, precisa, “fecha-se um ciclo”. Nesse sentido, dificilmente  poderia ser encerrado de melhor maneira.

Nos dois últimos dias de festival, sábado e domingo, vimos os barcelenses Glockenwise tocar o seu rock’n’roll feito urgência e grito juvenil ferozes como nunca (aconteceu na noite de sábado, no Palco Vodafone FM); percebemos com os Lay Llamas e a sua motorika de precisão marcial e abandono psicadélico que há uma Itália que urge descobrir; confirmámos que há algo maravilhoso a ser passado de mão em mão algures entre o Mali e o Níger (assombroso o concerto do trio de Mdou Moctar) e libertámo-nos em cumbia tresloucada, romantismo sem vergonha (e sai balada do brasileiro Sidney Magal) e memória pop local (e eis o povo dançando incrivelmente feliz o Vais partir de Clemente) durante o DJ set de La Flama Blanca na piscina, na tarde de sábado. Domingo, como supracitado, tivemos Tanzânia, tivemos Nigéria via Londres, tivemos psicadelismo de Austin. E tivemos os Earthless.

Uma hora e meia de concerto. Quatro canções. Isaiah Mitchell, o baixista Mike Eginton e o baterista Mario Rubalcaba. Um portento. Uma banda rock actuando como combo jazz – num momento é o baixista que parece liderar, noutro estamos de olhos postos no baterista, no seguinte é a guitarra que concentra atenções. Tudo isto, porém, sem que a intensidade da música diminua por um momento que seja, sem que se anuncie algo com o carácter institucional de um “solo”. Não há pausas, não há tréguas, não há espaço para qualquer serenidade. Um frémito que nos percorre enquanto o corpo é assaltado pela vibração do som e enquanto o cérebro tenta processar aqueles enxertos de riffs ou linhas de baixo dos Led Zeppelin e dos Black Sabbath que surgem para logo desaparecer entre a enxurrada sónica. As cabeças abanam ao ritmo, corpos surfam sobre a multidão, os Earthless, que editaram o seu terceiro álbum, From the Ages, em 2013, prosseguem, totalmente embrenhados no momento, e nós não queremos saber quando editaram o último álbum ou quantos lançaram desde que nasceram em 2001.

Nunca tendo deixado de acreditar no rock’n’roll, depois disto acreditamos novamente. Fervorosamente. Reafirma-se: se a edição 2014 do Milhões de Festa encerrou um ciclo, dificilmente arranjaria melhor banda para o assinalar.

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