Queremos o infinito como os Boogarins, queremos um funeral como o dos Vicious Five

Quinta-feira ouviu-se jazz, metal, folk rock e um soundsystem – viva a diversidade. Sexta, o Milhões de Festa, em Barcelos, arrancou definitivamente. Despedimo-nos dos Vicious Five, deliciámo-nos com os Boogarins, descobrimos uma maravilha chamada Soccer 96. O festival encerra domingo com os Earthless como destaque.

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Barcelos recebe até domingo o Milhões de Festa Miguel Nogueira
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Cenas de um funeral, o dos Vicious Five Miguel Nogueira
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Quim Albergaria em palco com os Vicious Five Miguel Nogueira
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Boogarins Miguel Nogueira
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O público do Milhões de Festa Miguel Nogueira
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O Milhões de Festa existe desde 2010 Miguel Nogueira
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Milhões de Festa Miguel Nogueira
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Fumaça Preta Miguel Nogueira
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O público do Milhões de Festa Miguel Nogueira
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O público do Milhões de Festa Miguel Nogueira
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O público do Milhões de Festa Miguel Nogueira

Barcelos, tarde de quinta-feira. Junto ao Parque da Cidade, ouve-se de fugida um rapaz que explica: “Era uma pessoa que vinha para a piscina toda vestida de branco”. O rapaz, cabelo comprido e barba igualmente, fita neo-hippie na cabeça, punha os amigos a par da mitologia do Milhões de Festa. O homem a quem se referia tornou-se figura reconhecida pela misteriosa e silenciosa aparição, durante um par de anos, no festival. Via os concertos e passeava vestindo uma jilaba branca, óculos escuros postos e bengala na mão. Era uma figura que se destacava e tornou-se parte da iconografia pop deste festival que Barcelos acolhe desde 2010. O rapaz da fita passava testemunho sobre o mito do “homem de branco”. A memória histórica do Milhões está assegurada.

Logo depois, apanhamos de fugida uma frase sábia: “Temos que continuar a viver que a morte é a única coisa certa”, despedia-se da amiga a velhota muito elegante no seu vestido azul e no seu sotaque minhoto. Tem toda a razão. Ainda para mais neste contexto. Aqui, no Milhões de Festa, vive-se como não se vive nos restantes dias do ano. Celebra-se. Músicos em palco e público na plateia, como mandam as regras. Mas esta não é, aqui, regra incorruptível – os músicos também são plateia: a comunidade Milhões (os “milhionários”, como se alcunham os que passam pelo festival por estes dias) é uma só.

Noite de sexta-feira, a primeira em que o festival arrancou verdadeiramente, com todos os palcos activos, depois da pré-festa de quinta, em exclusivo no palco Taina. Passa das duas da manhã e, perante o palco Milhões, o principal, instalado no Parque da Cidade, há um rebuliço de gente que dança furiosamente, que abre um círculo para o bom e velho mosh, que ergue os braços para carregar um companheiro entregue à nobre arte do crowd-surf, que os ergue novamente para amparar o vocalista que descera do palco se juntar à multidão. Funerais destes não temos todos os dias. Os Vicious Five, a banda lisboeta que, cinco anos depois de se ter separado, anunciou um breve regresso para despedida condigna, são responsáveis pelo concerto mais agitado da noite. Concerto de provocação punk boa onda, cortesia do endiabrado vocalista Quim Albergaria (“mesmo velhos, somos mais punk que vocês todos, niggas!”). Concerto de tensão rock’n’roll (o diálogo vivíssimo no jogo de guitarras de Bruno Cardoso e Edgar Leito, o nervo da secção rítmica de Paulo Segadães e Rui Mata) que acabará sempre em libertação catártica: “These are the electric chants of the disenchanted”, gritará Quim Albergaria. “Damn right, it’s misbehaving”, incitara antes. “You and me, me and you, are the revolution”, despedem-se.

A início do concerto, os Vicious Five, que queriam agitação, que queriam corpos em ebulição perante si, comentavam, “estou a ver que a Chelsea Wolfe [cantautora que os antecedera, horas antes, naquele palco] fez das suas, vocês parecem mortos”. No final, estavam todos vivos, mesmo os falecidos Vicious Five. A despedida foi um belo epitáfio –e, depois do concerto recente no Nos Alive, dificilmente haveria melhor cenário para ela que este festival.

Andava Quim Albergaria a cantar os seus gritos de catarse e incitação, carregado nas mãos do público, quando vemos sair da alegre confusão uma figura conhecida. Sorriso muito largo estampado no rosto, bamboleando ao som do ritmo, Fernando Almeida, guitarrista e dono da voz doce dos brasileiros Boogarins, era àquela hora naquela madrugada mais um entre os cerca de quatro milhares no Parque Fluvial de Barcelos. Horas antes, em palco, tinha sido protagonista daquele que é, para já, um dos concertos desta edição. Banda certa no tempo certo.

O quarteto de Goiânia, fundado por Fernando Almeida e por Benke Ferraz, tem a história da pop psicadélica na ponta dos dedos (dos tropicais Mutantes aos Tame Impala dos antípodas) e retira um prazer evidente, percebemo-lo em palco, das longas digressão cósmicas, qual banda em modo jam flutuando a sabem-se lá quantos mil metros de altitude. Os autores de As Plantas que Curam não perdeu tempo. À segunda canção chegou essa pérola chamada Lucifernandis, canção maior e aquela que todos entre o público trauteavam antes do concerto (continuaram a fazê-lo quando terminou). Um par de canções depois dessa, ouvíamos Fernando, o homem da dança andrógina e do sorriso constante, sintonizar-se com Arnaldo Baptista, o dos Mutantes, e proferir os versos, “Vou-me libertar / do tempo dos homens”, resumo perfeito do objectivo desta música totalmente crente no sonho e na capacidade transformadora da música. Entre essa Hoje aprendi de verdade modelada no Lazy old sun dos Kinks, e essa Doce que dá sequência ao Ando meio desligado dos Mutantes (“Pois no meu voo eu vou / sem aterrizar”), os Boogarins, banda em ascensão desde que Lucifernandis começou a correr mundo o ano passado, mostraram-se tão hábeis na gentileza psicadélica quase sussurrada, quanto no abandono às maravilhas do rock’n’roll sem rédeas.  Os Boogarins querem o infinito, como cantam algures. Nós vamos com eles nessa demanda. Todos saem a ganhar (sim, os Boogarins são demais, como diria Caetano).

Reencontros e descoberta

Quando eles se despediram, já muito tinha passado pelo festival. Tudo começa cedo, ao início da tarde, no já referido palco Taina e nas piscinas municipais com programação a cargo do Red Bull City Gang: e lá andava o nome da curadoria, criado em letras de esferovite, a flutuar na água, transformado em rede para jogos de vólei, enquanto os Dear Telephone tocavam as suas cinematografias a meio caminho entre o pós-rock e a Americana, enquanto uns Riding Pânico em versão alargada (quatro guitarras, percussão a cargo de Hélio Morais, dos PAUS e Linda Martini) davam uma tareia das boas ao público dentro e fora de água.

Os Riding Pânico são um clássico (estiveram em todas as edições, estarão naturalmente na próxima) e o Milhões faz-se desse reconhecimento e celebração de velhos conhecidos: os Riding Pânico, claro, mas também, por exemplo, os Sensible Soccers, autores desse recomendadíssimo álbum de estreia intitulado 8, que regressaram ao festival para dar um concerto memorável na madrugada de sexta-feira no palco Vodafone FM. A banda cria uma música nova, mutação benfazeja onde a electrónica pulsa de forma constante, os sintetizadores e as guitarras fornecem o discurso e o baixo, fortíssimo, assegura que a resistência do público à ginga que o corpo pede será impossível – são shoegaze e kraut-rock e techno e space rock e nada disso exactamente. Que depois, para encerra a noite, se tenha ouvido no mesmo palco a viagem pela Turquia rock e psicadélica da década de 1970, pelas mãos do DJ Baris K, faz todo o sentido. O Milhões, que aprecia os reencontros, tem também o prazer da descoberta inscrita no seu código genético.

E assim, antes de o rock atirado de encontro à tradição sul coreana dos Jambinai, os primeiros a actuar no palco Milhões, às 20h de sexta-feira, antes do dramatismo gótico, demasiado dramático, demasiado consciente de si, de Chelsea Wolfe (o drama passou ao lado, o bocejo ganhou), ou dessa armada britânica chamada The Cult of Dom Keller, que pega nas lições minimalistas dos Spacemen 3 e os transforma em viagem maximal (actuaram com Senra, baterista dos barcelenses Black Bombaim, no lugar do baterista original, retido em Inglaterra por problemas com o passaporte, e ninguém diria que houve zero ensaios antes do concerto), antes de tudo isso, dizíamos, e antes de os Fumaça Preta prosseguirem na rota tropicalista, na sequência dos Boogarins (a banda do luso-venezuelano Alex Figueira, conquistou o público com um festim de percussão, ritmos funk, delírio rock’n’roll e gritos alucinados: “Pupilas dilatadas!”), o sol descia no horizonte, estrategicamente colocado atrás do árvore que decora o palco Taina.

Ali, descobríamos um nome a que daremos, a partir de agora, toda a atenção. Chamam-se Soccer 96 e são um duo londrino. Um baterista que tanto se entrega a libertinagem free-jazz como mantém, infatigável, um ritmo constante capaz de levantar uma rave nos locais mais improváveis. A seu lado, um vocalista e teclista que lança a voz como mantra sem religião e que cria uma série de vagas de som, harpejos de sintetizador, linhas de baixo em rodopio, que servem de contraponto ao frenesim rítmico do companheiro. Perante uma centena de pessoas, no fim de tarde do palco Taina que, com som melhorado em relação ao ano anterior, se torna também, definitivamente, um dos espaços de referência do festival (pelas bandas e pela feijoada ou arroz de cabidela, bem cozinhado e generosamente servido por 2,5€), descobríamos a primeira grande revelação da edição 2014. O Milhões a cumprir-se, portanto. Tudo começara 24h antes. 

Da feira para o festival 

Final da tarde de quinta-feira. A feira na zona do Parque da Cidade começa a desfazer-se. Os corredores criados entre a venda estão ainda cheios de gente, entre clientes que procuram uma última compra e vendedores que começam a desmontar as suas bancas. Ouvem-se os Pink Floyd a sair das colunas rádio de um carro, ouve-se um bombo de música popular a fazer-lhe concorrência de outro automóvel. O crepúsculo anuncia-se e o amarelo brilhante do fim de tarde vai iluminando aquela azáfama pachorrenta que se repete todas as semanas, pés pisando e vassouras varrendo um mar de plástico, despojos de feira que se desmontava. Não muito longe, no palco montado no parque em varanda com vista para o rio Cávado e para Barcelinhos na outra margem, outro tipo de feira começava a nascer.

Final de tarde de quinta-feira. Um conjunto de dezenas de músicos de Barcelos a dar um concerto improvisado no Paço dos Condes de Barcelos (o “Castelo”, na voz popular), o rock’n’roll dos Modernos (ou seja, três quartos dos Capitão Fausto), a intensidade inescapável do Rodrigo Amado Motion Trio, o folk-rock vitaminado de Alek Rein, o delírio metaleiro nonsense dos Serrabulho e a dança das Iguanas, pessoal da editora Cafetra em modo soundsystem irresistível. Todos diferentes, todos Milhões.   

Começava o festival que, depois de um sábado preenchido com High On Fire, Flamingods, Awesome Tapes of Africa ou The Glockenwise, encerra domingo com o psicadelismo instrumental dos muito esperados Earthless (a banda que é como que cabeça de cartaz de um festival sem cabeças de cartaz), com os abrasivos Melt Yourself Down ou com o garage-rock dos Night Beats.  

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