Entre o Crioulo e o Português

Esta sexta-feira, 27, comemoram-se os 800 anos da Língua Portuguesa (LP), data do documento mais antigo de que há registo nesse idioma. Em Cabo Verde, apesar de ser a língua oficial, não é a materna. A falta de oralidade, por um lado, e a falta de sentimento de pertença da própria língua, por outro, têm condicionado a aprendizagem e o uso do português nestas ilhas. Mesmo assim, alguns especialistas cabo-verdianos garantem que a língua portuguesa está “viva”, mas alertam que precisa ser mais bem tratada.

Com cerca de 244 milhões de falantes em todo o mundo, a língua de Camões é, hoje, o quarto idioma mais falado do planeta. É crescente no mundo inteiro o número de interessados em dominar esse meio de expressão cujas raízes se perdem no tempo. Em Cabo Verde, contudo, a “coabitação” entre o português, língua oficial, e o cabo-verdiano, língua materna, não está isento de tensões.

Escritora e professora de profissão, Ondina Ferreira tem sido uma defensora acérrima da Língua Portuguesa, salientando que a mesma tem vindo a conhecer uma expansão notável no mundo. “Basta pensar que países como a China, a Índia e o Japão têm revelado um crescente interesse pelo ensino da LP nos respectivos países. De tal forma que o Japão pediu estatuto de Observador, junto da CPLP. O interesse desses países reside no facto de a LP ter aumentado o seu valor como língua de negócios”.

Aliás, a língua de Camões, ocupa hoje o 4º lugar no TOP dos 20 países mais falantes da LP, o que deixa transparecer claramente o poder e influência que tem vindo a conquistar, incluindo no próprio seio da CPLP, onde há partida os dialectos nativos ainda exercem pressão. “A LP é hoje a língua materna de mais de 80% de angolanos com menos de 50 anos de idade. E a percentagem sobe, quando se trata de população dos centros urbanos daquele país. Em S. Tomé e Príncipe, e à escala do país, o fenómeno linguístico é idêntico, ao de Angola. Em Moçambique, ela vem atingindo níveis de expansão assinaláveis”.

Dados do Observatório da Língua, que na opinião da nossa entrevistada deixam transparecer “a importância que os responsáveis dos países citados atribuem à expansão e ao apossamento da LP como língua de desenvolvimento por parte do seu cidadão, e como parte incontornável da sua história cultural”. Por isso, diante desse quadro, Ondina Ferreira antevê “um futuro brilhante, de plena globalização e de mundialização” para a LP no mundo.

Falta de pertença pela LP
O mesmo futuro risonho quer antever para Cabo Verde, onde, apesar de ser considerada língua oficial, a LP sempre foi a segunda língua. Na prática, a maioria dos cabo-verdianos começam por falar o crioulo, língua materna, que ao longo da infância vai ganhando terreno quer na informalidade e brincadeiras de criança, quer nos jardins-de-infância ou até nas salas de aulas do Ensino Básico Integrado, onde a aprendizagem é maioritariamente em crioulo.

Neste contexto, a nossa entrevistada defende que o ensino do português, sobretudo a sua oralidade, devia começar nos jardins-de-infância. “A criança cabo-verdiana que não a tem em casa (LP), devia ouvi-la desde muito cedo, dada a enorme capacidade de aprender línguas que a criança possui. E, isso, seria uma vantagem, uma mais-valia que a criança, depois aprendente, levaria para a escola e para a sua formação pós-secundária no país”.

Mas, o que tem dificultado a má aprendizagem do português nas escolas de Cabo Verde? Para Ondina Ferreira, o problema começa logo na “falta de assunção da LP como nossa língua também” dos cabo-verdianos. A este facto, junta-se “a falta de afecto e de interiorização normal”, como acontecia até há bem pouco tempo. “Há poucos anos a esta parte, tem vindo a acentuar-se este fenómeno de estranheza com a LP, entre os nacionais”. Estranheza essa que Ferreira crê “ser fruto de uma orientação – má e intencional – das políticas linguísticas que estão a suceder no país”.

Na sua opinião, um dos resultados que já é visível “infelizmente”, desse desapego, “é o pouco à-vontade com que o falante cabo-verdiano escolarizado se expressa em LP”. Esse distanciamento poderá, no futuro, “criar um fosso social e intelectual (em termos de raciocínio lógico/dedutivo) entre os alunos cabo-verdianos que já levam para a escola (de casa ou, mesmo do jardim de infância) a nossa língua segunda e oficial, e aqueles a quem a escola primária e secundária não presta a atenção devida ao ensino do português e a maltratam sem que ninguém, com isso, se escandalize”, alerta.

Língua é identidade
Ademais, Ondina Ferreira faz questão de lembrar que a LP “é o veículo linguístico fundamental de todo o percurso escolar do aluno cabo-verdiano” e a “língua de união que nos permite comunicar com os países da CPLP”, exemplificando, com “a significativa comunidade cabo-verdiana emigrada actualmente em Angola, para não falar da comunidade que foi e continua a ser numerosa, imigrante em Portugal e que recebe diariamente novos elementos que daqui vão em busca de trabalho”.

Questionada se a língua portuguesa tem sido "bem tratada" em Cabo Verde, Ondina Ferreira diz que não e argumenta que “o que está a acontecer e o que está em défice é a falta de oralidade da LP, em Cabo Verde” e vai mais longe, afirmando que “a língua oficial e segunda, em termos de oralidade, não está a ser respeitada entre nós”.

Contudo, apesar do cenário pouco animador, não acredita que a LP tenda a desaparecer em Cabo Verde e afirma que, se isso acontecesse, seria “como se amputássemos parte da nossa identidade, da nossa cultura, do nosso saber, da nossa produção literária, jornalística e técnica, e igualmente a parte mais significativa do progresso e do desenvolvimento conseguido por Cabo Verde”.

Paridade e complementaridade
Também o linguista e professor universitário Manuel Veiga tem uma opinião muito própria sobre a LP no país e destaca que o “contributo maior” que Cabo Verde tem dado para a “boa saúde” do português é, desde logo, “a declaração do português como língua oficial de Cabo Verde”. E nisso salienta ainda “as consequências que advêm dessa escolha no sistema do ensino, na administração, na comunicação, na criatividade artística e cultural”.

Outrossim, remete ainda para “o contributo” que “vem da consagração na Constituição da República do articulado que diz: o Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”.

Aliás, a falta de paridade e convívio das duas línguas, crioulo e português, em pé de igualdade, tem prejudicado a aprendizagem do português, acredita este entrevistado. “O ensino do português continua problemático pelo facto de não partilhar, convenientemente, o espaço do magistério com a língua materna cabo-verdiana, nos termos da Constituição que ordena a construção da paridade”.

Na opinião deste linguista, esta situação “é problemática” porquanto “o sistema impõe, por enquanto, o ensino formal apenas do português”, mas “os professores se confrontam na sala de aula com a presença fortíssima da língua materna que, por não estar devidamente enquadrada, procura, mesmo sem ser autorizada, e por necessidade ou comodidade, ocupar espaços que julga ter direito, mas que ainda não lhe é, legalmente, reconhecido”, explica a propósito da necessidade do ensino do crioulo.

Ensino de qualidade
Por isso, esta “luta” entre as duas línguas “desfavorece”, na opinião desse entrevistado, tanto a língua portuguesa como a língua cabo-verdiana. A solução, a seu ver, passaria por “ensinar as duas línguas com rigor e com metodologia própria, não em competição, mas em complementaridade”.

Aliás, Veiga defende que a LP ficaria “mais viva” quando “passar a viver mais harmoniosamente com a língua materna cabo-verdiana nos espaços de oficialidade, particularmente no ensino” e “passar a partilhar, harmoniosamente, mais espaços de informalidade com a língua materna cabo-verdiana”.

Por outro lado, admite que ainda que o português conseguirá conquistar outro espaço em Cabo Verde “quando a massificação do seu ensino corresponder também à massificação da qualidade desse mesmo ensino, com uma pedagogia e metodologia adequadas”.

Não obstante estes e outros constrangimentos, Veiga almeja que “o português da informalidade aumente o seu espaço e conviva, harmoniosamente, com a informalidade das línguas nativas, e que haja paridade e bilinguismo social efectivo entre o português formal e as línguas maternas nacionais” não só nas ilhas crioulas”, como em todo o espaço da CPLP.

Língua portuguesa sob pressão das línguas de emigração
Além de ter de competir com a informalidade generalizada do crioulo, língua materna de Cabo Verde, o português tem-se deparado com uma espécie de concorrência, sobretudo na oralidade, de outras línguas, como o italiano ou o inglês, devido à pressão do fenómeno turístico, sobretudo nas ilhas do Sal e da Boa Vista.

Apesar da existência de comunidades portuguesas nessas ilhas, a forte onda de emigração de italianos, na sua maioria, e até ingleses, tem fomentado a propagação do italiano como língua informal em bares, hotéis, restaurantes, lojas e outros serviços turísticos e não só da Boa Vista e Sal. Aliás, em muitos sítios, é mais comum ouvir-se o italiano, do que o português, ou o crioulo e, mesmo quando esses emigrantes tentam falar outra língua, geralmente falam mais depressa o crioulo do que o português. O mesmo acontece com a comunidade chinesa, que facilmente fala mais depressa o crioulo, com maior facilidade do que o português.

Texto originalmente publicado no jornal A Nação (Cabo Verde) a 26 Junho 2014

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