Memórias de Família

Memórias de Família

Pai e filho foram a duas guerras

O pai de António Espadinha Monte, José Manuel do Monte, é o primeiro homem de pé, à esquerda Miguel Madeira

Quando, em 1964, António Espadinha Monte foi chamado a ir para a Guerra Colonial parecia que a história se estava a repetir. Ele, tal como o pai, também era o único filho homem e, tal como tinha acontecido com o pai na Primeira Guerra Mundial, era chamado a ir defender os interesses de Portugal, lá longe. Cada um a seu tempo, tiveram que deixar para trás a aldeia alentejana de Peroguarda para partirem do mesmo cais, em Lisboa. António Espadinha para passar dois anos da sua vida na cidade moçambicana de Tete, de 1964 a 1965, o pai, José Manuel do Monte, para rumar até Brest, França, em 1917.

O pai nunca lhe deu conselhos, nunca disse lhe tinha medo que o filho partisse. Mas, quando chegou a vez de António Espadinha Monte embarcar, a guerra já não era assim tão estranha, tinha crescido a ouvir histórias de um soldado na Primeira Guerra Mundial. Descreve o pai como uma pessoa “retraída” em termos emocionais. O pouco que foi contando desse tempo, em família, “era às vezes com um copinho a mais”, nessas alturas às vezes até cantava o hino francês e falava da miséria que via entre a população francesa, dos miúdos com fome que na rua pediam às tropas portuguesas que viam passar, “biscuit, biscuit”.

Nas histórias que foi ouvindo ao pai percebia-se que as condições daquela guerra tinham sido piores do que as da sua. Contou-lhe daquela vez em que estavam nas trincheiras sem água e em que a sede era tanta que uma poça de água que acumulava as águas da chuva lhe pareceu irresistível, e muito límpida. Era perigoso ir até lá, estava mesmo à vista das linhas alemãs, mas o pai de António Espadinha rastejou até ao sítio e conseguiu beber até ficar completamente saciado. Voltou a salvo. Pouco depois, o exército alemão começou a bombardear com artilharia pesada as trincheiras portuguesas. Uma das granadas acabaria por cair sobre a poça de água onde o pai tinha estado a beber. “Foi então que, horrorizado, observou que veio à superfície da lagoa o cadáver de um militar alemão, já a desfazer-se pela putrefacção. Bem tentou vomitar a água que tinha bebido, mas em vão”, contou ao PÚBLICO António Espadinha Monte.

As condições de higiene eram tão más que era vulgar os soldados apanharem piolhos, mas nada disso podia transparecer nas cartas para as famílias, que eram censuradas pela instituição militar, diz. “Então, numa das cartas à minha avó, ele referiu que ‘na aldeia estava mal com o Zé Piolhinho, mas ali na Flandres já tinha feito as pazes com ele e davam-se agora muito bem’”. A carta iria chegar a Peroguarda (distrito de Beja) tal como tinha sido escrita e a avó de António Espadinha Monte ficaria a saber que o filho tinha piolhos.

Dizia-lhe o pai que nunca ficou a saber se matou alguém durante os diversos combates, por estar o inimigo longe da vista, ouvia-o. Houve uma vez que, durante a noite, o pai estava de vigia na trincheira e, no meio do silêncio, começou a ouvir uma tosse que não se calava, sempre na mesma direcção, do lado do inimigo. “Pensou que podia tratar-se de uma patrulha inimiga que procurasse aproximar-se das linhas portuguesas, ou mesmo do início de um ataque de infantaria alemão. Decidiu atirar uma granada na direcção da tosse. A tosse nunca mais voltou a fazer-se ouvir.” Ficou a dúvida.

António Espadinha Monte nunca teve este tipo de experiências na guerra colonial. Diz que, na prática, nunca foi combatente, uma vez que o distrito de Tete, nessa altura, ainda vivia uma “paz podre”, como conta no livro que escreveu entretanto, Dois anos em Tete-Memórias de um alferes expedicionário. De Moçambique fazia chegar ao pai, pelo correio, bobines gravadas com a sua voz onde contava as histórias da sua guerra. “Ele ria-se com as minhas histórias de África”. Era essa a intenção.

 
 

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