Análise: Gaza, o ‘Orientalismo’ e o extermínio de minorias no Magrebe e Médio Oriente

O conflito Israelo-Palestiniano só terá uma solução definitiva se passar as respectivas fronteiras e for abrangente, cuidando das minorias étnicas e religiosas vítimas de violência, desde a Mauritânia ao Iraque, defende o autor.

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Kahtaniya, no Iraque, após o atentado de Agosto de 2007 contra a comunidade Yazidi, que causou 796 mortos THAIER AL-SUDANI/REUTERS

A faixa de Gaza vê-se, uma vez mais, desde o passado dia 8 de Julho de 2014, envolvida numa espiral de violência. Analisado de uma perspectiva histórica, este conflito é apenas mais uma conflagração num longo ciclo de incivilidade. Também cíclicas são as inúmeras acções de protesto contra a ocupação israelita, aparentemente assentes na mais pura ética humanitária.

Duas semanas de combates provocaram já centenas de mortos, na sua maioria civis. Uma estatística macabra que irá seguramente aumentar à medida que prossegue a invasão terrestre de Gaza. Contudo, na mesma região, no Iraque, o autoproclamado Califado Islâmico já liquidou milhares de xiitas, que são igualmente oprimidos no Bahrain, no Iémen e nessa verdadeira Meca da intolerância, a Arábia Saudita. Ainda no Iraque, as populações Assíria e Yazidi não só vivem sob o jugo da ocupação há largas centenas de anos, mas também se encontram à beira da extinção.

Em 2007, cerca de 800 membros da minúscula comunidade Yazidi, com aproximadamente meio milhão de residentes, foram chacinados num único dia (14 de Agosto), numa série apocalíptica de ataques bombistas. Nem uma voz de protesto se fez ouvir na Europa. São, com certeza, muito poucos os activistas pró-Palestina que sabem sequer quem são os yazidis ou os assírios, estes últimos uma comunidade autóctone que precede as invasões árabes e que testemunhou o êxodo de cerca de um milhão de conterrâneos durante a última década, num universo total de 1,5 milhões de habitantes. O seu último enclave, a histórica planície de Nínive, encontra-se à mercê deste sinistro Califado. Isto após metade da população ter sido exterminada pelo governo turco durante o Genocídio Arménio, Grego e Assírio, que ceifou 2,5 milhões de vidas e que a Turquia continua a negar até aos dias de hoje. Todavia, informação em primeira mão encontra-se à distância de um clique na Internet. A título de exemplo, é possível saber mais sobre os assírios através da Assyrian International News Agency, o Seyfo Center ou até via Facebook. Basta pesquisar a página ‘A Demand for Action’ e/ou contactar o seu gestor, Mardean Isaac, que colabora com o jornal britânico The Guardian.

Igualmente ignorados são os coptas do Egipto, periodicamente hostilizados por via de ataques bombistas e linchamentos públicos, com o beneplácito das forças policiais que, em várias ocasiões (e com a aquiescência do poder político), tomaram parte nessas mesmas chacinas (exemplo recente, entre muitos: o massacre de Maspero, em 2011). Desta forma, a comunidade Copta do Egipto arrisca-se a seguir o mesmo caminho dos coptas sudaneses ou dos mandeus e shabaks do Iraque: a extinção. Após expurgar o país de minorias religiosas durante o século XIX, o Sudão, onde impera um regime teocrático presidido por Omar al-Bashir, formalmente acusado de genocídio e alvo de um mandato internacional de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional em 2009, vira-se agora contra a população negra (por exemplo, no Darfur) perante o silêncio ensurdecedor da Liga Árabe, sempre tão activa no que toca ao conflito Israelo-Palestiniano. Um autismo que se estende à Mauritânia, país no qual a escravatura apenas foi abolida em 1981 mas onde ainda se mantém por via de um sistema de castas, encabeçado pela minoria árabe. Mais: perante a apatia da vasta comunidade de activistas ‘orientalistas’ (vide próximo parágrafo), a Mauritânia dá-se ao luxo de manter sob ocupação, desde 1975, um terço do território do Saara Ocidental, enquanto Marrocos anexou os restantes dois terços, isto em clara violação da deliberação do Tribunal Internacional de Justiça. O mesmo se passa com a autoproclamada República Turca do Chipre do Norte que, desde 1974, tem abertamente menosprezado as resoluções da ONU. Ambas as ocupações continuam a ser ignoradas, ao passo que a ocupação de Gaza e da Cisjordânia monopoliza a atenção de uma babel de Organizações Não Governamentais (ONG). A pergunta é inevitável: porquê? Numa escala de carnificina, o sofrimento assírio e yazidi é incalculável: uma coisa é ocupação, outra completamente diferente é extermínio. É esta hipocrisia, fruto da ignorância, que permite a existência de outras muito mais devastadoras, como o facto de a Turquia negar o Genocídio Arménio-Grego-Assírio, ocupar parte do Chipre e Curdistão, apoiar islamistas na Síria e ainda arrogar-se o direito de censurar Israel. Ironicamente, o Estado de Israel é também um produto da intolerância árabe, especificamente do êxodo forçado de um milhão de judeus de países de maioria muçulmana que posteriormente se enraizaram na Palestina e permitiram a expansão ilegal e manu militari das fronteiras hebraicas propostas pela ONU em 1947, para as actuais, de 1967.

Também ironicamente, entre muitas associações pró-Palestina impera o que o eminente académico palestiniano Edward Said apelidou de ‘Orientalismo’, ou seja, uma representação simplista e estereotipada do ‘mundo oriental’. Para estas, e para gáudio do imperialismo árabe e do radicalismo sunita, existe hoje um ‘Mundo Árabe’, dilacerado por um conflito ‘Israelo-Árabe’ (e não Israelo-Palestiniano), onde não há espaço para as minorias étnicas curda, bérbere, beja, núbia ou tuaregue, nem para o Le Manifeste du Négro-Mauritanien Opprimé (publicado em 1986 na Mauritânia e esquecido desde então); nem para as minorias étnico-religiosas copta, assíria, yazidi, alauita e drusa; nem para os xiitas na Península Arábica, e muito menos para a minoria cristã ortodoxa na Cisjordânia, assim como para ateus e agnósticos espalhados por todo o Médio Oriente. Visto que não existe nada para além do conflito ‘Israelo-Árabe’ na visão maniqueísta dos ‘orientalistas’, inconscientemente irmanados com imperialistas árabes e islamistas, a resolução do mesmo é contemplada como uma panaceia universal. De facto, a ocupação da Palestina é uma tragédia que terá, forçosamente, o seu fim; apenas não existe um elixir milagroso, já que, por exemplo, extremistas sunitas entendem o conflito não como a luta pela autodeterminação de um povo, mas antes em termos puramente religiosos, o que impossibilita a presença de um estado não-sunita, não-árabe na região. No pólo oposto, mas subserviente ao petróleo saudita, situam-se os Estados Unidos da América e vários países europeus, desesperados por manter um aliado a qualquer preço (Israel), enquanto abandonam toda a noção de moralidade (o caso gritante do não-reconhecimento do Genocídio Arménio-Grego-Assírio), na tentativa não menos desesperada de seduzir um segundo parceiro (Turquia). Neste contexto, onde imperam calamidades maiores, é impossível chegar a uma solução definitiva para o conflito Israelo-Palestiniano, solução essa que terá de ser mais abrangente e que obrigará o Estado de Israel a reconhecer a independência da Palestina, tal como levará os imperialistas árabes e os fanáticos sunitas a verem gorados os seus planos de extermínio. Passo a enumerar:

- O fim da escravatura informal na Mauritânia.

- O fim da ocupação turca do Chipre.

- O fim da ocupação do Saara Ocidental por parte de Marrocos e da Mauritânia.

- A independência do Curdistão.

- A independência ou autonomia das regiões de maioria assíria no Iraque e na Síria.

- O mesmo para os yazidis.

- Reconhecimento de igualdade de direitos para a minoria copta no Egipto e reconhecimento do seu estatuto como população indígena anterior à arabização do país.

- O mesmo para a minúscula minoria copta no Sudão.

- Reconhecimento de igualdade de direitos para a maioria xiita no Bahrain e minorias xiitas no Iémen, Kuwait e Arábia Saudita.

- Reconhecimento universal do Genocídio Arménio, Grego e Assírio.

- O fim (negociado) da guerra civil na Síria.

Uma vez que a maioria dos governos se encontra refém de interesses económicos e/ou confessionais, restam apenas as ONG e demais grupos informais de activistas, que têm exercido pressão sobre os respectivos governos. Será imperativo que abandonem o seu ‘Orientalismo’ baseado numa falsa intelectualidade repleta de lugares-comuns, seduzidos por uma guerra assimétrica num local exótico, por uma causa vista como prestigiante e de grande impacto mediático; e, caso as suas motivações sejam verdadeiramente humanitárias, que contextualizem o conflito Israelo-Palestiniano e, por fim, se dediquem a expor e solucionar, um por um, todos os flagelos que consomem a região, da Mauritânia ao Iraque.

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