Transplantados: pessoas que vivem duas vezes

Doentes que receberam rim há mais de 25 anos foram homenageados no Porto. Foi como "nascer de novo", descrevem.

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Rosa Nascimento e António Bernardo vivem há mais de 30 anos com rins transplantados Fernando Veludo/NFactos
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António Correia Bernardo vive há três décadas com um rim de um jovem que foi vítima de um acidente de moto. “Ganhei uma segunda vida”, diz o risonho economista reformado, que, aos 70 anos, continua a exibir um ar saudável e a acreditar que vai conseguir aguentar o órgão que o “salvou” por mais algum tempo.

Se continuasse na hemodiálise – fazer diálise nos anos 1980 era um processo complexo, “puxava pelo coração” –, António acredita que não conseguiria ter sobrevivido durante muito tempo. Por isso, quando os médicos do Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, lhe fizeram o desafio, com as ressalvas absolutamente legítimas na altura – “você vende saúde, mas isto é 50% ciência e 50% sorte” –, nem hesitou. “Tive sorte e também tenho que agradecer à ciência”, reconhece, enquanto se lembra da noite em que foi operado, 30 de Novembro, e do que lhe segredaram ao ouvido quando acordou, horas depois: “Hoje é o dia da independência” (era já 1 de Dezembro, feriado). “E foi mesmo a minha independência”, remata, cheio de entusiasmo.

Nestes 30 anos, na tal segunda vida que o novo órgão lhe proporcionou, fez muitas coisas, tirou “uma nova licenciatura, uma pós –graduação em ciências empresariais e um MBA”.  Um percurso  que lhe permitiu dar aulas na universidade Lusíada e na Academia da Força Aérea ainda antes de se reformar.  Hoje, António continua atento a tudo o que pode ajudar a prolongar a vida do órgão herdado e da sua vida, por inerência (nestas idades já não se fazem novos transplantes).

O seu “parceiro” (é assim que designa o doente que recebeu o rim direito do mesmo dador) morreu, entretanto. Com a imunidade reduzida, António tem consciência de que necessita de seguir “um plano de vida regrado”. Bebe muita água e praticamente não come carne nem peixe. “Sou lacto-ovo-vegetariano”, descreve, repetindo que tem que “estimar muito este órgão” e que a regra básica é não lhe “dar muito trabalho”.

António Correia Bernardo destacava-se domingo entre os mais de três dezenas de transplantados que subiram ao palco da Biblioteca Almeida Garrett, no Palácio de Cristal (Porto) para serem homenageados. Como forma de assinalar o 45º aniversário do primeiro transplante em Portugal e o dia do transplante , a  Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) decidiu atribuir diplomas a pessoas que receberam rins há mais de 25 anos e conseguiu encher a biblioteca com os homenageados, respectivos  familiares e alguns profissionais de saúde que se dedicam a esta actividade. Mesmo assim, os presentes na cerimónia não passam de uma gota do oceano de portugueses que já receberam um transplante de rim. Foram 10 mil pessoas e, destas, cerca de 6600 estão vivas, estima Fernando Macário, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação.

Os especialistas não se cansam de dizer que um órgão transplantado não é eterno e acaba por vir a ser perdido. Mas os transplantados que se concentraram domingo na biblioteca do Porto são a prova de que é possível  ter uma vida prolongada e com qualidade após o transplante. Apesar de ser difícil de definir, o tempo máximo que um órgão transplantado resiste oscila, em média, entre os 12 e os 15 anos, no caso do rim.

Maria Augusta Mendes é outro caso que demonstra que as médias existem para serem ultrapassadas. Foi em plena lua-de-mel que a ex-operária metalúrgica de Marco de Canavezes descobriu que estava doente, tinha então “vinte e poucos anos”. Ainda fez hemodiálise no Hospital de S. João, no Porto, até ser transplantada já lá vão 28 anos. “Nasci de novo”, sintetiza, emocionada, a mulher que depois do transplante teve um filho e conseguiu “fazer uma vida normal”.  Aos 62 anos, Maria Araújo Martins,  também transplantada há 28 anos, vai mais longe e declara, pomposa, que a experiência, “a quem corre bem , é muito melhor do que o Euromilhões”.

Para Rosa Nascimento, que aos 36 descobriu que padecia da mesma doença que vitimou a mãe (“rins poliquísticos”), o transplante, após o inferno da diálise de “um ano que mais pareceram 11” no Hospital de Curry Cabral,  foi  também como “ nascer de novo”. “Até me esqueço que tenho um rim novo”, confidencia Rosa, 69 anos, enquanto acaricia a barriga (o órgão transplantado é colocado na fossa illíaca, sem que haja necessidade de retirar os rins do doente). Rosa sabe que esta benesse não dura para sempre. Dois irmãos seus, afectados pela mesma doença, receberam transplantes mas acabaram por morrer alguns anos depois.  

Crescimento depois de anos de quebra
A aventura dos transplantes em Portugal começou, porém, alguns anos antes de estes doentes terem recebido rins  Foi a 20 de Julho de 1969, “no mesmo dia em que o homem foi à Lua”, que em Portugal se fez o primeiro transplante renal, recordou Fernando Macário, durante a cerimónia.

O urologista Linhares Furtado,  no Hospital Universitário de Coimbra, arriscou muito para transplantar em condições então bastante complicadas  um rim de uma mulher de Sever de Vouga que tentou, desta forma,  salvar o irmão gravemente doente. Meses depois, o homem acabou por morrer, e, só passados 11 anos, em 1980,  é que iniciou a transplantação renal a partir de dador cadáver, lembrou Fernando Macário. “No início quase incipiente, a actividade veio a impôr-se” e hoje, em Portugal, além do rim, já se fazem transplantes de coração, fígado, pulmão, pâncreas, córnea, medula e osso.

Fernando Macário aproveitou a cerimónia para voltar a defender a necessidade de se facilitar o acesso dos doentes às consultas e tratamentos, porque, se os transplantados faltarem, põem em risco o novo órgão. “É transversal a todas as áreas da saúde: existe alguma dificuldade de acesso dos doentes aos cuidados de saúde”, alertou.

João Cadete, da Associação Portuguesa de Insuficientes Renais, corroborou a denúncia, notando que a associação de doentes que representa, se tem empenhado numa “luta muito grande” pelo direito a transporte pago para as consultas pós-transplante. "Este direito existe para doentes que provem insuficiência económica, mas, mesmo assim, há casos em que lhes é negado o acesso ao pagamento e isto é gravíssimo”, disse.

Para ultrapassar este problema, a SPT reivindica há muito tempo a descentralização do seguimento de doentes transplantados, mas só recentemente é que o Ministério da Saúde decidiu arrancar com esse trabalho.

Hélder Trindade, presidente do Instituto Português do Sangue e Transplantação, adiantou a propósito ao PÚBLICO que essa recolha está em curso e que vai facilitar o atendimento dos doentes.

De resto, a cerimónia de ontem serviu também para alertar de novo que é preciso continua a apostar nesta actividade, que está a recuperar, depois de uma  quebra acentuada em 2011 e 2012. A transplantação de órgãos em geral recuperou no ano passado e este ano voltou a aumentar. Hélder Trindade disse mesmo acreditar que há condições para que Portugal consiga chegar este ano ao "3º lugar por milhão de habitantes" nas colheitas, depois de vários anos complicados.

Os números de transplantes e de dadores vinha a cair desde 2010. Mas em 2013 já houve recuperação e os dados do primeiro semestre apontam para um um aumento de 20% nos transplantes e de 19% nas colheitas de órgãos, anunciou.

Fernando Macário lembrou que é fulcral optimizar a colheita de órgãos, até no caso do rim, onde a lista de espera continua a ser grande (cerca de duas mil pessoas que aguardam em média quatro anos). "Portugal tem uma razoável taxa de colheita a partir de cadáver, mas quanto mais cedo for feito transplante melhor, sobretudo se o doente for transplantado antes de iniciar a diálise", explicou.

A SPT está empenhada em promover o transplante renal de dador vivo, uma tarefa que começou com a campanha "Doar um Rim Faz Bem ao Coração". Os doentes agradecem.

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