Governo quer permitir que empresas privadas passem multas de estacionamento

Comissão Nacional de Protecção de Dados levanta "sérias dúvidas" sobre a proposta.

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A questão de quem tem o poder para passar multas de estacionamento tem causado polémica Dario Cruz

O Governo pretende atribuir às empresas privadas de estacionamento a competência para aplicar multas a quem não paga o o montante visível no parquímetro. Esta intenção está expressa num projecto de decreto-lei do Ministério da Administração Interna, ao qual a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) já levantou "sérias dúvidas".

O diploma define as regras para que os trabalhadores das empresas concessionárias de estacionamento de duração limitada possam exercer actividades de fiscalização. Esta competência hoje cabe às autoridades policiais, mas também às câmaras municipais e às empresas municipais de estacionamento, como a EMEL, em Lisboa.

Através do decreto-lei, o Governo quer alterar um artigo de um decreto-lei de 2005, que diz quem é que fiscaliza o cumprimento do Código da Estrada. Se for aprovado, os funcionários de empresas privadas poderão aplicar multas de estacionamento.

Num parecer datado do passado dia 8 de Julho, a CNPD levanta dúvidas sobre a matéria. “A transferência de poderes públicos de autoridade para entidades privadas suscita uma série de problemas novos, desde logo quanto à legitimidade dos concessionários para cumprir ou restringir direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, opina a CNPD.

Para a comissão, está em causa inclusive a forma legal com a qual o Governo quer fazer estas alterações. “Se se compreende que esta delegação, realizada por força de acto legislativo, possa legitimar a atribuição de poderes públicos e entidades privadas, suscita, porém, sérias dúvidas que um diploma com a forma de decreto-lei, emitido pelo Governo, possa cumprir as exigências de competência e forma constitucionalmente definidas”, acrescenta o parecer.

Para a CPND, tal alteração deveria estar vertida “em lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado”.

Segundo o parecer, a proposta do Governo choca com a Lei de Protecção de Dados Pessoais. Esta lei reserva a entidades públicas a possibilidade de manter registos de pessoas suspeitas de contra-ordenações. A CPND pode autorizar a manutenção de registos a outras entidades, mas em situações e condições específicas, “as quais, in casu, parecem não se verificar”.

Diz ainda a CNPD: “Seguindo a solução ora protagonizada, se antevê a possibilidade de acesso regular por parte de empresas privadas a registos/informações que integram bases de dados de organismos públicos, como seja o registo automóvel e, por essa via, a possibilidade de proliferação de acessos sistemáticos a bases de dados que se pretendem seguras e salvaguardadas.”

Foi o próprio Ministério da Administração Interna que pediu a opinião da CNPD. Contactado pelo PÚBLICO, o ministério não quis comentar o teor do parecer, nem forneceu qualquer informação sobre a sua proposta de decreto-lei. “Não vamos fazer comentários sobre um processo legislativo em curso”, disse a assessora de imprensa Susana Quaresma.

A questão de quem é que aplica ou processa multas de estacionamento tem sido alvo de alguma polémica. Desde 1998 que os funcionários de empresas municipais de estacionamento estão equiparados a agente de autoridade administrativa, podendo levantar autos de notícia.

Mas há três anos o provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, disse que havia ilegalidades em regulamentos municipais que previam o processamento das contra-ordenações pelas câmaras e a reversão do dinheiro para os cofres do município. “A tramitação dos processos é de competência da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária”, defendeu o provedor, num parecer de 2011.

Em 2013, o Governo alterou a lei, abrindo a possibilidade de as câmaras processarem as contra-ordenações, desde que assim o propusessem e mediante parecer da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.

Ainda assim, permanecem dúvidas. Em Braga, o advogado João Magalhães tem patrocinado processos judiciais devido a outro tipo de situação: o processamento de multas referentes a infracções que não foram presenciadas por um agente da autoridade, mas registadas apenas pelos funcionários da empresa privada concessionária do estacionamento à superfície na cidade. “A questão não tem a ver com a empresa, tem a ver com a polícia municipal e com a câmara, que convertem papéis em multas”, afirma.

Sobre a possibilidade de se conceder às empresas privadas a competência para passar multas João Magalhães diz: “É inconstitucional.”

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