Verdade ou consequência?

Dois manifestos, cada um à sua maneira, sobre a arte e a sociedade portuguesas, um dos quais parte do trabalho de um músico desaparecido; e o outro se faz acompanhar de música ao vivo.

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Os Negros e os Deuses do Norte Raquel Matos
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Canções i Comentários>/i> Patrícia Almeida

Fronteira sem barreiras nem inspecção alfandegária: como aquela linha desenhada no chão, na ponte sobre o Minho, entre Valença e Tui, que permite ter os pés em dois países ao mesmo tempo. Enfim, são dois manifestos, cada um à sua maneira, sobre a arte e a sociedade portuguesas, um dos quais parte do trabalho de um músico desaparecido; e o outro se faz acompanhar de música ao vivo.

Canções i Comentários é mesmo o que o título indica: a apresentação de um lote de cantigas, quase todas em inglês, sacadas do baú de um músico, Blarmino, que não chegou a ser famoso, e de factos anedóticos contados pelo autor da peça, Rui Catalão, sobre essa figura que seguiu e com quem privou. As canções são fixes. Mas o interesse da peça vem da exemplaridade da história de Blarmino e da presença de espírito com que o ex-crítico musical do PÚBLICO relata os factos. Catalão denuncia a sobranceria cultural com que as elites donas do bom gosto miram de longe a cultura popular e a cultura de massas, exercendo ele próprio essa sobranceria, mas com bonomia e uma certa distância. O sentido de humor é classista, virado ao contrário.

No início do espectáculo, Catalão dá uma pista falsa: ele e Blarmino viviam na mesma casa de Alfama como Dr. Jekyll e Mr. Hyde na de Londres. Serão o mesmo? Se tudo isto fosse uma prova de ficção, seria mais interessante. O autor não se descose. Mas, a bem dizer, qualquer relato é uma forma fictícia. O facto de Blarmino poder ser qualquer um de nós, a começar por Catalão, e de a sua voz muda ser afinal a nossa voz, da geração nascida nos anos 70, atrai o olhar e hipnotiza. O espectáculo é simples, íntimo, delicado, mas o efeito é amplo e douradoro.

O que o título Os Negros e os Deuses do Norte tem a ver com o espectáculo é mais obscuro. João Garcia Miguel escreveu um manifesto sobre os bezerros de ouro no Portugal de hoje que é dito por uma espécie de estrela do rock’n’roll, a que não faltam versos e expressões em inglês. Assim à primeira vista, esta revelação de que o jogo está viciado, algo que todos sabemos, parece um encontro a meio caminho entre o FMI de José Mário Branco e os conselhos do taxista típico ditos por uma mistura de Jim Morrison com Janis Joplin.

O carisma da actuação fica mais por conta dos músicos, em especial Gil Dionísio, que usa e abusa dos seus dotes xamânicos. Garcia faz prova dos seus próprios dotes para a espectacularidade, orquestrando muito bem as actuações, a música, a luz, o cenário e os figurinos, mas a tentação da vanguarda é mais forte do que ele. É uma ironia que esta denúncia dos falsos profetas seja feita por outros profetas, na forma de uma celebração da arte, que acabam por ter pés de barro.  

O Festival de Almada recomenda-se, não só pelas peças, algumas memoráveis, mas também pelo ambiente de festa, em especial da Esplanada, um trunfo do evento. Aqui pode-se morder as ambrósicas talhadas de melancia ou melão, trincar os melhores panados a sul do Tejo (sequinhos, sequinhos) e beber do branco ou do tinto, antes de entrar no teatro. Não me tornei crítico gastronómico, sossegue o leitor; a função da crítica, como avisou Bernard Dort, é analisar também o contexto dos espectáculos. Além de matar a fome e estimular o palato, esta Esplanada permite resolver o eterno dilema entre jantar ou ir ao teatro, conciliando vontades. Um testemunho na primeira pessoa: a organização do festival teve a cortesia de oferecer senhas de alimentação ao crítico. Até para o ano.

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